UM DIA NO HOSPÍCIO
Na rua josé Feliciano é onde eu moro com meus avó paternos. Não que eu seja órfã, mas por problemas familiares com meus pais, fui obrigada a ir morar lá na casa deles. No início achei ruim porque iria perder a honrosa liberdade, estava na cara que iriam me tratar como uma criancinha ingênua. Em pleno anos 80 aos 12 anos, obviamente, já conseguia distinguir o certo do errado. Bem, isso foi só no começo, após alguns meses de convivência passei a entender um pouco da rotina que os dois levavam.
Ela, minha vó, enfermeira e ele, meu avô, motorista aposentado que tocava saxofone na banda de música da prefeitura da cidade. A rotina era bem diferente da vida que tivera com meus pais. Certo dia minha avó Lúcia perguntou:
- Gabriella, você que ir para o trabalho comigo neste domingo?
- A senhora pode levar alguém? Pensei que fosse apenas para funcionários. - Argumentei surpresa com o convite. – Pensei um pouco e respondi: - Quero ir sim!
- Claro que posso, minha querida, mas apenas aos domingos. Vamos logo cedinho. – Concluiu sorrindo.
Fiquei ansiosa na expectativa que chegasse logo domingo. O famoso lugar onde ela trabalhava era cheio de mistério, pois se tratava de um hospício (aquele lugar exclusivo para malucos de verdade).
No dia esperado saímos bem cedo de casa. Fomos no fusquinha preto do meu vô. Meia hora despois estávamos ali em frente ao edifício cujo nome era “Colônia Juliano Moreira”, vulgo “hospício”. Fiquei decepcionada pois, pensei que seria mais assustador, tipo uma casa mal acabada, talvez. Bem, entramos e minha avó já foi dando as instruções:
- Olhe aqui garotinha, não se aproxime daquela porta com a grade e fique quieta naquele sofá. Pegue seu livro e não saia daí. Entendeu? – Exclamou e foi para uma sala ao lado.
Olhei meio intrigada e curiosa, pois até então, não havia notado a tal porta. Sentei-me onde ela mandou e peguei Monteiro Lobato e reiniciei a gostosa leitura. Passados alguns minutos, ouvi uma voz chamando, quase como um sussurro: “Ei, menina bonita, venha aqui!” Quando levantei a cabeça percebi que a voz vinha da porta pela qual vovó proibiu aproximar-me. Olhei espantada para a mulher e ao mesmo tempo sem saber o que fazer. Ela continuou a chamar insistentemente. Antes que alguém ouvisse, levantei-me e fui até a porta.
- Para de gritar, alguém poderá te ouvir! – Exclamei impaciente. – O que você quer?
Enquanto esperava pela resposta, aproveitei para olhar lá dentro e vi um pátio enorme, onde estavam muitas mulheres. Foi aí que ela estendeu a mão com um copo de plástico e disse:
- Pega água pra mim, ali no filtro. – Pediu implorando apontando para o lado esquerdo.
A primeira coisa que lembrei foi da ordem da vó. Porém, sei que não se deve negar um copo com água a ninguém. Então, peguei o copo e fui enchê-lo. Enquanto isso, escutei uns burburinhos, olhei para trás, o pior havia acontecido. A porta estava entupida por algumas moças que estavam no pátio. Num empurra, empurra maior do mundo. Todas querendo água com canecas coloridas nas mãos.
- Calma gente, não precisam gritar! Darei água a todas se ficarem quietas. – Falei quase gritando.
Pelo menos resolveu, elas se calaram e iniciei a trajetória de encher o copo de todas. Meia hora depois já com as pernas e braços cansados de tanto carregar água, a minha vó apareceu e foi logo gritando.
- Voltem todas para seus lugares agora! Não quero ninguém aqui na grade. – Explodiu e olhou para mim. – E você mocinha, desobedeceu às minhas ordens para ficar quietinha...
- Elas estavam com sede e ... – Respondi sem esperar ela terminar.
- Não me interrompa! Elas têm problemas mentais e algumas são perigosas. Você teve sorte por nenhuma pegar seu braço e puxá-la para contra a grade. – Bradou e saiu para a enfermaria levando-me junto.
Fomos por um corredor onde do lado direito tinha janelas gradeadas e homens a olhar por elas. Todos assustadores. Agarrei com força o braço dela de medo. No final do corredor dobramos a direita e chegamos a uma porta larga. Já estava a esperar duas enfermeiras amigas da minha avó.
- Agora vamos entrar para medicá-las e você não saia de perto de mim, entendeu? – falou em tom de autoridade.
- Nós entraremos naquele pátio cheio delas? – Perguntei começando a tremer todinha e já sabendo a resposta, pois ela apenas balançou a cabeça confirmando. – Grudarei na senhora feito chiclete. – disse por fim.
A porta foi aberta e entramos. A primeira impressão que tive foi de abandono. “Quantas estavam ali sem os seus familiares?” Pensei e continuei no meio delas. Começaram a falar ao mesmo tempo, e algumas delas tentaram segurar meu braço e alisar, e diziam “a princesa de mãe Lurdes chegou”. Foi engraçado ser chamada de princesa e a mãe que elas falavam era a minha avó.
Enquanto elas eram medicadas pelas enfermeiras, incluindo minha avó, observei que uma delas estava afastada do grupo a olhar-me sem piscar. Senti um calafrio e realmente tive medo. De repente, essa mulher passou a gritar feito louca – literalmente – a apontar o dedo para mim. Correu em minha direção, neste momento fiquei paralisada e prestes a ser espancada. Olhei para o lado e quase desmaiando formou-se uma confusão entre as loucas:
- Vou te matar sua assassina! – Disse para mim, a que estava a encarar-me e vinha em minha direção.
- Você não está nem louca varrida para fazer isso! – avançou a outra e ficou em minha frente a defender-me. – Eu te matarei primeiro com meu raio mortal. Apontou para o céu e começou a girar. Na hora eu comecei a rir com a mão na boca e vi que mais mulheres ficaram ao meu lado, todas girando e olhando para cima. Fui obrigada por uma delas a girar também com o braço estendido olhando para cima. Isso foi suficiente para a que me ameaçou de morte saísse correndo. No meio da confusão toda, senti alguém puxando meu braço e quando abri os olhos era minha avó.
- Nunca mais te trarei aqui novamente viu. Nunca mais! – Saiu do pátio às pressas resmungando.
E foi assim que acabou meu dia. Quase enlouqueci num lugar de loucos.
Nunca mais minha avó me levou para aquele lugar novamente.
Débora Oriente