RACISMO NOS ESTÁDIOS

 

Uma pergunta que sempre me fiz foi por quê os racistas são racistas? O que leva uma pessoa ser racista? Ao final desta crônica, talvez se possa apresentar uma resposta, talvez simples, mas que talvez seja a única possível ao contexto de toda a complexidade que envolve o tema.

 

A priori, cabe aqui uma explicação acerca do meu entendimento sobre preconceito, discriminação e racismo. Embora esses termos sejam correlatos, eles não têm o mesmo significado. Preconceito é o julgamento antecipado, sem conhecimento de causa, significa ter um "conceito" antes do proprio conceito, ou seja, para o caso, é ter uma opinião formada sobre uma coisa ou pessoa, sem conhecer essa coisa ou pessoa; discriminação é o ato de diferenciar, de tratar as pessoas de modo diferente; o racismo é a maneira de agir, pensar, se expressar, se relacionar e tratar outras pessoas de forma preconceituosa ou discriminatória, em razão da cor de sua pele ou origem étnica.

 

As complexidades relacionadas ao racista, referem-se a questões que envolvem psicologia, inteligência, emoção, reações psíquicas, etc., até questões sociais, relacionadas à economia e à política, como domínio e poder.

 

Por essa razão, é possível falar de racismo direto, enquanto neste se evidencia o crime de ódio, onde há violência com preconceito e/ou discriminação racial; também existe o racismo institucional, que é sutil, menos explícito, mas que reflete sorrateiramente uma violência abominável; de igual modo, temos o racismo estrutural, quase imperceptível, a olho nu, pois está encrustado na cultura do povo, e muitas vezes ela passa desapercebido.

 

Na verdade, o pano de fundo de qualquer racismo é a ideologia da hierarquia entre raças, onde se tenta impregnar na consciência dos povos a ideia de que uma raça possui a supremacia em relação à(s) outra(s). A história está farta disso!

 

As recentes manifestações racistas que vemos nos estádios de futebol é de entristecer. Ou melhor, é de se constatar que a humanidade evolui a passo de cágado, quiçá bicho-preguiça (se evolui, e isso é uma discussão filosófica, a ser tratada noutra crônica!).

 

Em que pese iniciativas como a Conjuração Baiana de 1798, bem como o destemido discurso de José Bonifácio de Andrade e Silva que já na constituinte de 1824 chamava a escravidão de “cancro mortal que ameaçava os fundamentos da nação”, a abolição da escravidão no Brasil só veio acontecer com a Lei Áurea, promulgada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, dando um fim formal à escravidão no Brasil. Nota-se, aqui, que considero a queda da escravidão apenas do ponto de vista formal.

 

Entretanto, pelo que se constata ainda hoje, essa denominada e festejada alforria, de fato, ainda não aconteceu, pelo menos na cabeça de alguns mentecaptos, pessoas que escondendo a mancha das próprias imperfeições e limites, tentam impor, injustamente, aos outros, deles diferentes, a pecha da inferioridade.

 

O racismo se apresenta, de fato, nessas manifestações, da forma mais vil que existe, que é a segregação e/ou diminuição de outro ser humano em função da cor da pele e/ou de origem étnica.

 

A imbecilidade dessas abomináveis figuras revelam o quanto eles ainda não aprenderam que lutar contra a natureza é empreitada perdida, de pronto e a priori, visto que é jogo que se perde ao entrar, nem precisa jogar. O racista entra numa disputa em que já perdeu! A esse, sim, a paráfrase ésse-te-efeana, tem sentido: " - perdeu, mané!"

 

Egoístas que são, esses racistas também idiotas, ridículos, formam a plêiade do que pior existe na humanidade, pois são cruéis, atrevidos, dissimulados, falsos, preconceituosos, tristes, pérfidos, covardes, hipócritas, desonestos, gente da pior espécie. Revelam, na própria manifestação preconceituosa e discriminatória, a própria inferioridade, mostrando-se sociopata, incongruente moral, inapto à convivência social.

 

O que fazer com esse tipo de gente? Aplicar a justa reprimenda penal? Isso será suficiente? Talvez não, face a algo que parece não ter remédio. Do ponto de vista pessoal, melhor seria aplicar-lhe um inovador processo de reeducação, uma, quem sabe, máquina do tempo, capaz de proporcionar ao criminoso racista uma regressão, uma volta no tempo das experiências vividas no passado, capaz de identificar a origem da ferida que lhe causou e que lhe causa atitude de tanto ódio, tanto horror. Quem sabe, assim, descobrindo a causa, possa-lhe propor um efetivo e eficaz saneamento no esgoto de suas ideias.

 

Enveredando pelas minhas elucubrações ficcionais, pra tentar compreender esse mundo tão real, tão concreto e tão cruel, quem sabe eu não consiga tornar existente essa tal máquina do tempo e, assim, talvez, melhorar o mundo. Afinal, só os escritores podem isso, pois criam histórias, fazem nascer,  morrer ou renascer qualquer personagem. Então, vamos lá, à ficção!

 

Mas não se perca, meu amigo leitor, deixa eu te contar uma história extraordinária! Vamos lá?

 

Certa vez encontrei uma senhora negra, uma velhinha, mas tão velhinha, de fala lenta e corroída, corcunda de dar dó, mas com um sorriso sem dentes e olhos negros tão cândidos que abraçava e cativava qualquer um apenas pelo olhar. Não tinha como não se apaixonar por aquela linda senhorinha, tão negrinha, tão magrinha, velhinha, e tão linda.

 

Eu, com ela, curioso que sou, não me poupei em perguntá-la da sua idade, ao que sorrindo, escorreita no politicamente adequado, ela redarquiu:

 

- Meu filho, não se pergunta a idade para uma mulher, não é mesmo!?

 

- Eu sorri, ela também!

 

- Você quer mesmo saber da minha idade, então se prepare, pois vou te contar uma coisa sobre minha vida, mas só conte aos outros se você acreditar no que vou te dizer, tá bem?

 

- Sim, pode deixar!

 

Então ela começou a contar sobre a sua longa vida. Disse que conheceu e testemunhou muitos fatos da história do Brasil. Contou que presenteou o mundo com 132 filhos, de vários pais, mas isso não importa, todos já estão mortos, e muitos dos filhos que teve também já morreram.

 

E continuou dizendo que muitos filhos morreram ainda bebês ou quando crianças, vítimas das causas corriqueiras da mortalidade infantil. A maioria deles, contudo, fora bem-criada, como crianças soltas no mundo, livres na vida, voando na liberdade.

 

Em relação aos amores que teve na vida, ela disse que nunca teve preconceito ou discriminação, e namorou, e amou, e teve filhos com tantos outros negros, mas também com mulatos, cafusos, índios e mamelucos; com homens jovens, velhos, maduros, e não olvidou também de engravidar e amar com homens brancos, amarelos, vermelhos, gordos, magros, esquisitos, bêbados, marinheiros de outras praças, mascates, viajantes de trupe, artistas de circo, violeiros que se diziam apaixonados,  homens de todas as raças, religiões, origens, matizes, cheiros e cores. Eles foram seus amores, assim ela disse! E concluiu dizendo que também amou homens verdes e homens azuis.

 

-Hã!? Verdes e azuis!?

 

- Pois é, esses homens verdes e azuis, ela não disse, talvez porque não soubesse, mas concluo que sejam extraterrestres. Sabe-se lá!

 

Na verdade, ela foi uma mulher namoradeira, boa amante, fértil e muito parideira também! Afinal, foram 132 filhos. Essa viveu e, pela lucidez, ainda vive de bem a vida!

 

- Ah, isso é mentira! Ninguém pode ter tantos filhos assim?

 

- Calma aí, meu amigo. O mais curioso é o que ainda está por vir. Presta atenção.

 

- Ela não sabia, ao certo, a data em que nascera, porém, quando lhe perguntei, lânguida ela foi ao quarto, lentamente ela vasculhou um baú velho e trouxe consigo um pedaço de jornal velho, empoeirado, pedindo que eu lesse ali o artigo que me indicou. Fiquei curioso, tratava-se de uma folha de jornal antigo, muito antigo, porém bem conservado, envolto plastificado.

 

Pesquisei e vi que esse periódico circulou na Corte do Rio de Janeiro, no século XIX, entre os anos de 1821 e 1878, tendo sido o primeiro tipografado no Brasil com publicações diárias.

 

- Caramba, era velho mesmo! Um jornal de mais de duzentos anos atrás! Putz!

 

Pois é, então comecei a ler o recorte que ela me pediu: tratava-se, como disse, de uma matéria inserta na edição do "Diário do Rio de Janeiro, datado de 07 de julho, do ano de 1823, folha 20".

 

- Caramba, há cem anos atrás, que coincidência!!!

 

- Isso mesmo, que coisa, há exatos duzentos anos, puxa! Pois bem, a matéria dizia, ipsis litteris, o seguinte:

 

No dia 23 de junho pelas 10 horas da noite fugio huma preta de Nação Moçambique, por nome Carolina, estatura ordinária, alguma couza baixa, cheia de corpo, rosto redondo, com muitos sinaes da Nação, com o beiço de cima furado, peitos atacados, ainda rapariga, vestida com huma camiza de paninho, e saia de algodão riscado de Minas; quem a pegar ou souber adonde elle pára dirija-se a rua de Sabão lado esquerdo vindo para o Campo N. 147, que receberá boas alviçaras”.

(disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094170_01&pagfis=3131)

 

Eu fiquei sem entender o que ela estava querendo me dizer. Então tratei de perguntá-la o que significava aquilo. Ela disse:

 

- Essa Carolina sou eu, meu rapaz! E esperou, sorrateira, minha reação.

 

Não é negar que a minha reação foi de desconfiança, por certo! Embasbacado fiquei, atônito continuei e pasmo permaneci! A situação merece a repetição semântica! Uffa!

 

Para entender a velhinha, eu providenciei de pensar comigo: - talvez ela esteja apenas fazendo uma piada; ela tá brincando comigo! Comecei a rir! E ela, sorrindo me disse:

 

- Pois é, ninguém acredita, não é, meu filho? Pois acredite: eu sou essa menina escrava que fugiu. O meu nome é Carolina. Pelo relato do jornal, nesse tempo eu era uma rapariga, portanto, devo ter a idade de um pouco mais de 200 anos, 215, talvez! Não foi isso que você queria saber, a minha idade?

 

- Sim, foi! Estou estupefato!

 

Para aliviar o clima de desconfiança, em respeito àquela adorável senhorinha, eu lhe disse:

 

- Claro, eu acredito na senhora!

 

Era mentira, eu continuava sem acreditar. Então ela finalizou a conversa dizendo:

 

- Olha, meu filho, eu sempre gostei daquela música do Zeca Pagodinho, quando canta: “Eu já passei por quase tudo nessa vida, em matéria de guarida espero ainda a minha vez”, mas devo te dizer a você que eu canto essa música sabendo que a minha guarida eu a conquistei naquele dia 07/07/1823, há exatos 200 anos atrás. Da escravidão, do grilhão, do preconceito eu estou fora há muito tempo, deixei pra trás, eu fugi disso aí e já faz mais de duzentos anos. Não me importo com o que os outros pensam ou falem, vivo a minha vida. Desde aquela data eu decidi que SOU LIVRE; e SOU LIVRE PARA AMAR, E AMAR MUITO!

 

Depois ela se despediu de mim, com um beijo em minha testa, como a dizer: "- esse menino não sabe de nada da vida!" e seguiu pra dentro de sua casinha, uma choupana, pobre, mas com dignidade, esperada daquela comunidade quilombola, lugar em que viveu por todos esses longos dias.

 

A partir do encontro que tive com essa linda senhora de mais de duzentos anos, sem saber que  história que ela me contou era verdadeira ou não,o que não me importa, pois daquele dia em diante a minha vida mudou, pois percebi naquela linda senhora de duzentos anos que a verdadeira liberdade é o amor; não há liberdade sem amor. Ser livre é amar, sem preconceito, de todas as formas. O Racista é, antes de tudo, um ser que não sabe o que é o amor, nem o amor para com o outro, nem o amor para consigo mesmo. É uma pena!

 

Resistir é preciso! Viva, Vinícius Jr., por pelo menos mais duzentos anos!

 

 

 

Crédito da Imagem:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_%C3%81urea#/media/Ficheiro:Lei_%C3%81urea_(Golden_Law).tif