Feridas e Cicatrizes 2
Hoje eu estou perdido no abismo que existe entre as versões de quem escreveu o primeiro "feridas e cicatrizes" e quem escreve hoje.
De fato, não poderia ser diferente diante da consideração de que atualmente tenho vinte e dois anos e, nos dias que decorrem esse mês, completarei dois anos morando por conta própria, trabalhando e lidando com a minha vida sem o auxílio direto dos meus pais…
É interessante ressaltar que somente percebi o quanto me sentia deslocado dentro da minha própria casa quando convivi da porta pra fora buscando a mim mesmo e mudando sem ter medo de decepcionar meus "superiores" (no caso, essa era a imagem que eu tinha dos meus pais). Também será um ressalto válido e deve ser observado durante a leitura desse texto, umas das poucas coisas que nunca mudaram durante a minha vida é o meu processo de autoconhecimento e a impressão que ele passa pra mim de ser anormalmente lento e torturante - um exemplo: somente após sair do ambiente onde vivi dezenove anos da minha vida, muitos deles me sentindo estranho e cultivando gatilhos pra ansiedade e depressão, eu finalmente percebi que me sentia deslocado e que muitas das coisas que eu fazia não condiziam com o meu próprio eu.
Meus primeiros meses fora deste ambiente, foram assustadoramente banhados em liberdade e solidão. Isso porque, pela primeira vez na minha vida, tive coragem de dar o que muitos chamam de "salto no escuro" e o próximo local que eu chamei de "casa" somente pôde ser chamado assim graças a dois amigos meus (os mesmos citados anteriormente, no evento da primeira vez que bebi vodka, enfim…) que acabaram por botar pra frente planos infantis e eu aceitei a oferta deles somente com a fé de que tudo isso daria certo de alguma forma…
Exatamente do jeito que é facilmente imaginado, em poucos dias minha "vida adulta" passou de "sonho infantil" a loucura completa, pois além de estar dividindo a intimidade de um lar com dois amigos completamente diferentes de mim, eles ainda eram um casal recente buscando estrutura no meio do famoso "primeiro ano de casamento"... Isso tudo sem mencionar o fato de que eu não sabia fazer um arroz, pagar uma conta, usar cartão de crédito, limpar banheiro, cuidar de animais de estimação… (enfim). Lá estava eu, convivendo as cegas, completamente perdido dentro da minha própria casa e aprendendo um novo trabalho, afinal, na mesma época eu lidava diretamente com público e com dinheiro, como caixa de mercado numa jornada de trabalho cruel e estressante.
"Chegando em casa então, ele chorou e pro inferno ele foi pela primeira vez"
(Referências…)
Adcino mais uma informação válida, tendo em vista que, apesar do caos inevitável, minha convivência com esses dois amigos foi extremamente benéfica. Eu aprendi muito e não me arrependo das decisões que tomei; busquei a evolução e hoje sei que ela só vem com o erro, pra somar, referenciando meu processo de autoconhecimento já citado, foi preciso bastante sofrimento e drama para que eu pudesse entender que a "solidão" que banhou meus meses, na verdade se chamava "independência" e, quanto a "liberdade"... Eu pude alimentar uma fome que nem sabia que existia.
Morar na casa dos meus pais significa, mesmo que inconscientemente, "seguir os padrões" - isto é, ser e fazer o que meus pais esperam. Coisas naturais como "hora pra voltar", "ficar quieto quando os adultos estão falando", quem são suas companhias, o "padrão" de família que vai a igreja aos domingos… tudo isso sempre foi um tipo de máscara pra mim; percebi tarde demais que nunca tive escolha sobre esse tipo de coisa, eu simplesmente pensava que todos deveriam ser assim e o contrário disso seria errado e, no meu caso, impossível. Levando isso em consideração, uma vez que não existiam "padrões" a serem seguidos, os meses nos quais eu estive perdido me levaram a todo tipo de lugar e a conhecer todo tipo de gente, resumidamente, lidar com as vozes na minha cabeça era mais fácil com som alto e álcool, então, superando todos os graus de "clichêzisse", eu deixei meio me poluir.
Meu maior aprendizado foi descobrir que não tem problema viver como meus pais acham que é o certo, mas ninguém deve ser obrigado a isso. Claro que a criação que meus pais me deram foi impecável, apesar de me sentir diferente de todos ao meu redor, ainda assim possuo ótimas qualidades e gosto de ser quem eu sou (além de que, muito provavelmente graças a minha criação, eu nunca fui preso…).
A questão maior é: se sentir bem sendo ou fazendo coisas que meus pais não esperam (e não aprovam) levantou questões genuinamente assustadoras e experiências extremamente desconfortáveis. Eu mesmo não me conhecia, logo como meus pais poderiam me conhecer? E se me conhecerem, me aceitariam? E se não aceitarem, realmente faz diferença? Bom… eu sinceramente não sei. Toda liberdade que eu conquistei fez com que a ausência de padrões se tornasse confortável, e consequentemente, a distância dos meus "superiores" também.
Isso até meu mundo cair…
Exatamente um dia depois do meu aniversário, descubro que meus pais se separaram. Pra piorar o soco na nuca que eu senti junto com a notícia, pelos motivos citados acima, eu não estava nem perto quando aconteceu…
"Chegando em casa então ele chorou e pro inferno ele foi pela segunda vez"
Estava eu novamente perdido e, por alguns momentos, tudo era desconfortável… mesmo que a liberdade pudesse me dar o mundo inteiro, isso não valeria de nada se as pessoas mais importantes do mundo estivessem sofrendo. Até hoje eu não consigo colocar em palavras tudo que aconteceu na minha cabeça; meu mundo foi se montando aos poucos, afinal, apesar de sentir culpa pelo afastamento, decidir pela liberdade me moldou para melhor segundo meu próprio julgamento sobre mim mesmo e, ainda que minha presença pudesse dar apoio naquela situação, a relação dos meus pais sempre foi intimidade somente deles (compreensivelmente), logo, alguns meses se passaram e tudo pôde se encaixar.
Agora, a liberdade e a independência fazem parte do meu dia-a-dia (exatamente como qualquer adulto…), ainda de forma assustadora, mas, o mais "normal" que eu consigo ser. Minha saga de autoconhecimento continua sendo tão anormalmente lenta e torturante quanto sempre foi, mas eu reconheço minha própria maturidade em pensar que o meu tempo só precisa ser importante pra mim e minhas atuais experiências religiosas estão me guiando pelo caminho da paciência e evolução. Aos poucos, pude ver que meus pais se resolveram cada um pelo seu próprio caminho, lidar com as vozes da minha cabeça se tornou cada vez menos uma questão de "calar" para se transformar em uma questão de "acalmar", eu tive a oportunidade de deixar meus amigos cultivar seu relacionamento em paz entre eles e de mostrar minha gratidão a tudo que eles fizeram por mim e, dessa forma, dar o próximo passo.
Em suma, tem quatro anos desde que eu postei o primeiro "Feridas e Cicatrizes" e, exatamente como daquela vez, eu não tenho um "final" pra essa história, mas fico feliz em perceber que estou muito mais seguro de mim mesmo, além de mais focado e com mais planos por futuro. No fim, o plano de fundo caótico pelo qual roda meu processo de autoconhecimento acaba por trazer a inspiração para seguir em frente.
Caso você tenha chegado até aqui, obrigado pela atenção.