Crônicas Médicas - Pais: a parte mais complicada da pediatria?
Costumo ouvir de vez em quando, em tom pejorativo, que os pais são a parte mais complicada da pediatria. Alguns casos, no entanto, extrapolam todos os limites e revelam que, ao menos em algumas situações, esse pensamento pode se mostrar verdadeiro. Ou não?
* * *
Era uma sexta-feira, por volta das três da tarde, quando acabávamos os atendimentos em um dos consultórios e partíamos para outro, a fim de concluir todas as consultas daquele dia. Na sala, estavam uma mãe e sua filha, que nasceu prematura e com problemas na formação dos pulmões, agora com seis meses de idade, uma residente de pediatria e um acadêmico da minha turma. Naquele momento, o clima não estava muito legal.
Logo ao entrar no consultório, era perceptível o sofrimento daquela criança sentada no colo da jovem mãe. Um tanto dispneica, respirava com muita dificuldade. Só de estar ao lado dela era possível ouvir sons anormais vindos de um pulmão carregado e possivelmente tomado por alguma infecção. Gemente e perdendo gradativamente a consciência, a menininha não esboçava reação aos estímulos que a equipe médica aplicava sobre ela.
“Vamos precisar fazer um raio-x de tórax, exame de sangue e levar sua filha para fazer inalação, até que tenhamos os resultados e possamos decidir a melhor conduta”, assim explicou a médica que conduzia a consulta. Enquanto isso, eu e os demais que acabavam de chegar nos acomodávamos ao redor da mesa.
“Não, eu não posso ficar aqui”, reagiu a mãe, inquieta.
“Mas não tem como liberarmos sua filha desse jeito, ela está muito mal”, replicou a doutora, preocupada com o estado de saúde da menina.
“NÃO VOU FICAR AQUI!”, falou com veemência, agitada e desconfortável na cadeira. “Não quero passar a noite aqui!”
“Você quer levar sua filha para casa desse jeito?”, interveio o médico preceptor. “Olha só, ela está muito cansada”.
“EU NÃO VOU PASSAR A NOITE AQUI!”, repetiu a mãe, com a voz nervosa e oscilante, já um tanto agressiva.
“Veja, mãe, se você estivesse com a falta de ar que sua filha está, na mesma hora você pediria para receber oxigênio”, argumentou novamente o preceptor. “Se a gente liberar a menina assim, vai ser uma grande irresponsabilidade da nossa parte. A gente não pode fazer isso. Ela pode morrer e a gente não quer que isso aconteça. Você quer?”
Dessa vez não veio resposta. O silêncio pairou sobre a sala e só foi quebrado quando o médico falou novamente.
“Você tem outros filhos?”
“Uma filha de três anos”, respondeu a mulher.
“Está grávida de novo”, acrescentou a médica que conduzia o caso. “E o calendário de vacinação está atrasado”.
“Talvez esteja na hora de parar de ter filhos”, comentou o médico. “Parece que está difícil cuidar desses”.
“Eu não vou dormir aqui. Eu não quero dormir aqui”, retrucou a mãe. “Se eu soubesse que ia ser assim, eu não tinha trazido o passe do meu marido”.
“A gente só quer fazer alguns exames e dar medicação para sua filha”, a equipe tentou conversar.
“Eu preciso devolver o passe do meu marido, senão ele não consegue trabalhar”.
“Ele não consegue pegar aqui com você?”
“Eu não posso dormir aqui!”
“A gente liga para a assistente social e dá um jeito de entregar o passe do seu marido”.
“Eu quero ir embora. Não quero ficar aqui”, chorava a mãe. “Preciso pegar meu celular e ligar para meu marido”.
“Toda vez é essa dificuldade, doutor”, explicou uma das residentes que já conhecia a família. “Sempre tem uma desculpa para não ficar aqui. É sempre uma dificuldade para aceitar as nossas condutas”.
Nesse momento, ela se levantou e foi em direção à porta. O médico imediatamente se colocou de pé e foi atrás dela, para evitar que ela se evadisse do hospital e fugisse com a criança naquele estado debilitado de saúde. Ela se sentou ao lado de sua mochila e, em nenhum momento fez menção de pegar o celular para ligar para seu parceiro. Permaneceu ali, chorosa, agitada, olhando para os lados e balançando a perna, com a criança quase inconsciente no colo.
Uma das residentes se dirigiu à entrada do ambulatório para avisar à equipe de segurança para impedir que a mãe saísse dali com a criança. Enquanto isso, eu e a outra residente nos posicionamos cada um de um lado do corredor, em uma tentativa de inibir que a mulher tentasse uma fuga. O restante da equipe retornou à sala para concluir os documentos de evasão, já que a mãe se recusava a permitir a continuação do atendimento.
Ali no corredor, a criança começou a piorar e o nível de consciência decaiu. A menina parecia prestes a desmaiar. Assim, a médica residente tentou avaliar, pelo menos, seus sinais vitais e auscultar o pulmão.
“Para de se mexer, por favor”, pediu a médica, enquanto a mãe, nada colaborativa, balançava insistentemente a perna, em um claro sinal de desconforto por estar ali. “Assim ela vai passar mal e eu preciso ver como ela está”.
Por poucos segundos, a mãe cessou os movimentos, mas logo os retomou e impossibilitou a avaliação do estado de saúde da filha. Assim, a médica pediu:
“Deixa eu pegar ela no colo rapidinho”.
“Não!”, gritou a mãe. “Você não vai tomar a minha filha de mim”.
Em seguida, a mulher se levantou e saiu caminhando apressada para o lado em que a residente se encontrava. Batemos à porta do consultório, avisamos ao preceptor que ela estava se evadindo e corremos atrás dela. Virando em um corredor, a mãe seguia a passos largos em direção à saída.
“Aonde você vai?”, perguntou o médico.
“Eu quero ver a assistente social”, respondeu a mãe, virando-se para nós.
“Eu vou chamar ela”, respondeu o doutor. “Fica aí esperando que eu já volto”.
A mulher se sentou e a médica residente seguiu tentando reavaliar a criança, que deteriorava no colo da mãe.
“Eu não vou ficar aqui”, começou a resmungar a mãe. “Eu não quero passar a noite aqui”.
“Mas a gente precisa cuidar da sua filha. Olha como ela está”.
“Você acha que eu não quero cuidar da minha filha?”, perguntou a mãe de forma agressiva. “Acha que eu quero que ela fique mal?”
“É o que está parecendo”, retrucou a médica. “Ela está doente e você não quer deixar a gente cuidar dela”.
Nesse momento, em meio aos gritos, à agressividade e às negativas de permitir o cuidado por parte da equipe, a mãe começou a xingar a residente que tentava examinar a criança. Pacientes de todos os lados chegavam para ver o que estava acontecendo e encontravam a cena de uma mãe chorosa e agressiva, sentada e abraçada à filha, um acadêmico em pé de um lado do corredor e uma residente em pé do outro lado, tentando ajudar a garotinha quase inconsciente.
As pessoas murmuravam e tentavam entender o que acontecia ali. Mais gente se aproximava e os olhares curiosos deixavam a situação ainda mais delicada.
Irritada com tudo aquilo, a mãe se levantou e empurrou a residente para fora de seu caminho. Decidida, caminhou em direção à saída. Nesse momento, o médico chegou com a assistente social, que, a partir dali, assumiu o caso na tentativa de convencer a mãe a permitir que a filha fosse cuidada ali no hospital.
* * *
Durante todo final de semana, fiquei me perguntando como o caso havia se desenrolado. Será que aquela mãe teria aceitado que cuidassem de sua filha ou teria insistido em fugir do hospital? Também me questionava por que ela havia se posicionado daquela forma. Era desinteresse pela saúde da filha? Era medo do marido? Era pavor frente ao estado de saúde da menina? Era algo a mais que não havia chegado ao nosso conhecimento? Fato é que, nesse caso, até aquele momento, os pais se mostravam um empecilho para o cuidado da criança.
Segunda-feira, quando retornei ao hospital para meu estágio, já em outro setor, encontrei a criança internada e a mãe, com cara de poucos amigos, sentada ao seu lado. A feição da menina era diferente. Não apresentava mais esforço para respirar, não parecia mais cansada, estava definitivamente melhor.
Busquei seus dados no sistema e li suas evoluções. O raio-x não se mostrava com alterações significativas e os exames de sangue se apresentavam relativamente normais, mas seu exame físico revelava problemas importantes, provavelmente decorrente de uma bronquiolite por algum vírus. Assim, foi tratada com medicações para aliviar a dificuldade respiratória por quatro dias e permitir que o corpo se recuperasse daquela infecção.
Enquanto lia seu histórico, ouvi a equipe informar à mãe que a menina estava de alta e que poderiam ir embora. Em poucos minutos, já não se viam mais mãe e filha no hospital.
Com isso tudo, eu me pergunto se havia necessidade de a situação transcorrer daquela maneira. O que impedia aquela mãe de aceitar de imediato a conduta da equipe médica? O que a assistente social argumentou para convencer a mulher a permanecer no hospital? Em que ponto a conexão entre os médicos e a mãe se perdeu? A conversa poderia ter sido diferente por parte dos profissionais?
Enfim, com o rápido contato que tive com a situação, não posso responder a essas perguntas. Não conheço bem o suficiente o contexto dessa família para entender o caso. Então, tudo o que passa pela minha cabeça são suposições. E, nesse caso, suposições não me ajudarão a fazer um julgamento justo e imparcial de todo o ocorrido. O que posso fazer é cuidar para que quando eu for o profissional responsável por um atendimento o mesmo não se repita. Que eu estabeleça boas relações com meus pacientes e seus acompanhantes, que eles aceitem e participem da tomada de decisão e que, assim, os pais não se revelem a parte mais complicada da pediatria.