O Sonho de Luísa
Nesta madrugada em que escrevo, Luísa (*), 36 anos, está numa sala de UTI de hospital, inconsciente, toda intubada, muito inchada por conta de uma severa hemorragia interna. Chance praticamente zero de sobrevivência, só está viva por estar ligada aos aparelhos.
A qualquer momento receberei a notícia de sua morte.
Ao receber este dramático quadro de Adriano (*), meu amigo e irmão de Luísa, fiquei chocado e triste, não por ter uma ligação forte com ela, mas sim por saber de sua história de vida e de como essa história influiu para que ela chegasse a esse estado, desfecho que era, assim, não tão imprevisível.
Adriano é um amigo de longa data e sei da história porque ele me confidencia as atribulações da família.
Luísa é uma irmã pouco mais velha de Adriano e até uns dois meses atrás vivia na mesma casa com ele, a mãe e Soninha (*), outra irmã, mais velha do que os dois, solteira, professora de escola pública do ensino médio, dona da casa e que é a chefe da família. A família é pobre, a casa é pequena e simples, de um conjunto habitacional de uma Cohab, tem três quartos, sala, cozinha, banheiro e uma edícula.
Havia um problema de ordem psíquica com Luísa. O problema não afetava suas relações, visto que conversava e interagia bem com as pessoas. Pelo menos era essa a impressão que me causava, nas pouquíssimas vezes em que conversei com ela. No entanto, o relato que Adriano me fazia do dia a dia do relacionamento com ela contrastava muito com essa impressão. Será que com as pessoas estranhas ela se portava de uma maneira e com as pessoas íntimas de outra?
Ela não conseguia estabelecer uma convivência amigável com seus familiares. Por algum motivo revoltada, talvez pela situação toda de dependência, brigava com todos, até com sua própria mãe, que é uma pessoa bem calma e humilde. Tinha períodos de depressão e por conta disso, tomava antidepressivos. Não tinha vida própria, dependia da família. Não podia ficar sozinha na casa, pois não era confiável em suas ações. Às vezes recusava-se a tomar os medicamentos, o que piorava as coisas. Chegava a ficar internada em um hospital psiquiátrico da cidade, quando as crises se acentuavam.
Nas primeiras vezes em que a encontrei na casa, quando ia visitar Adriano, ela fazia por merecer a fama que tinha. Magra, o rosto sem expressão não sorria, a tez morena como a dos irmãos denunciava o sangue mestiço. Macambúzia, ficava encolhida no sofá ou passava por mim sem me cumprimentar. No entanto, conforme foi ganhando confiança, ela passou a me tratar bem. Por isso, passei a estranhar o comportamento que meu amigo pintava dela. Um dia, ela me deu um santinho de santa Luísa, pedindo-me que rezasse naquele dia, pois era o dia da santa, que ela venerava. Esse foi o momento em que mais me aproximei dela e hoje, não sei por que, sinto que nele havia um pedido de socorro que eu não soube captar.
Houve uma época em que se envolveu com um rapaz, chegou a sair da casa com seus poucos pertences para viver com ele, para alívio da família. Mas a paz na casa durou pouco, pois logo ela voltou, implorando que a aceitassem de volta, pois o rapaz era um pé-rapado sem a mínima condição de cuidar dela.
Depois de algum tempo, envolveu-se com outro rapaz, também um pobretão, mas desta vez mais responsável e digno. A surpresa foi que um belo dia ela apareceu com a notícia de que estava grávida. Quando Adriano me contou isso, coloquei as mãos na cabeça, sem acreditar. A gravidez era tudo de errado que podia acontecer com a moça. A situação toda em relação à sua saúde psíquica e os fortes remédios antidepressivos contribuíam para um alto risco de insucesso naquela gravidez. Acho que não era preciso ser médico para se chegar a essa conclusão, quando se conhecia a situação da moça. Mesmo na hipótese de que a criança nascesse saudável, que tipo de educação ela receberia de uma mãe que praticamente era outra criança, com grande dependência das pessoas? Sem muito conhecimento das implicações jurídicas, cheguei a comentar que, naquele caso, dadas as circunstâncias, talvez o aborto fosse algo a ser considerado, desde que autorizado pelo psiquiatra e pela lei.
Mas nessa idéia havia um obstáculo. Acontece que Luísa estava adorando a idéia de ter um filho. Talvez aquele filho fosse uma resposta à sociedade que tanto a maltratava, que a repudiava, que a considerava uma doente, uma inútil. Um filho mostraria a todos que ela era, afinal, normal, como todo mundo. Ela podia ser mãe. Talvez cuidar de um filho, além de colocá-la em pé de igualdade com as mulheres, desse-lhe também um sentido agora para viver.
A gravidez, porém, começou a preocupar a família, principalmente a mãe de Luísa, que prenunciava um futuro sombrio para todos. Confidenciou-me esta um dia que não conseguia dormir com a idéia da gravidez.
Os outros irmãos da família, preocupados com a situação e com o estado da mãe, promoveram uma reunião de família na casa, com a presença do casal e deram um ultimato. O casal deveria arrumar outro local para viver e cuidar do filho. Não era possível ficar na casa.
Assim, pressionado, o casal foi morar na casa da mãe do rapaz, onde ele já vivia.
A coisa estava nesse pé, seis meses de gravidez, quando há alguns dias Adriano me deu uma notícia terrível. Luísa estava internada, com o bebê morto em seu útero. A situação era preocupante, pois já perdurava por alguns dias e era grande a possibilidade de uma infecção. Os médicos davam-lhe medicamentos abortivos, para que o bebe morto saísse espontaneamente. Mas não tinham sucesso e consideravam agora a hipótese de fazer uma cesariana.
Quando Adriano me contou isso, disse-lhe que talvez tudo estava se resolvendo de maneira natural e satisfatória para todos. Talvez somente Luísa ficasse chateada, mas principalmente para ela aquele desfecho seria o melhor possível.
A coisa, porém, pareceu ter-se complicado na cesariana. Com a pressão alta, houve uma grande hemorragia interna e agora ela está na sala de UTI, inchada, agonizante. Não há esperanças.
O sonho de Luísa terminou, mas com ele também sua própria vida está terminando.
Luísa, vá em paz. Você merece descansar de tudo isso.
(*) Nomes trocados para preservação das identidades
Postscriptum: A crônica foi escrita na madrugada do dia 16/12/2007. Logo após escrever a última frase, por volta das 7h00 da manhã, meu amigo me ligou comunicando que sua irmã se fora. Com a voz embargada, desatou a soluçar e desligou o telefone.