É claro, e notório, e de conhecimento de toda a nação

E no sétimo dia, embora tendo ele terminado a sua obra, ele não descansou. Porque ele não é nem nunca foi Deus, mas sim, modernamente e quase em tempo integral, motorista de aplicativo.

Digo "quase em tempo integral" porque nosso trabalhador moderno sabe, não por providência divina apenas, mas por conta da natureza humana básica, que há de separar tempo para lavar suas partes particulares, visitar o toalete ou latrinas rodoviárias, cochilar alguns minutos, e principalmente cavar a vida.

Cavar a vida, uma vida cada dia mais cara e profunda, no sentido pejorativo do termo. Uma vida cara, não a cara dele, não apenas a vida dele, mas a de seus três filhos, a de sua esposa oficial e a da ocasional também. Ou seja e ademais, pagar despesas tais quais: moradia, alimentação, energia elétrica, água, internet, plano de saúde, impostos fixos, mensalidades, resort, bons vinhos, viagens internacionais etc. e tais.

É claro, e notório, e de conhecimento de toda a nação que essas despesas não são da alçada do nosso trabalhador por aplicativo, pois ele não é nem nunca foi jogador de futebol destacado, político desonesto (Pai, perdoai-me a redundância), nem detentor de ações da Apple. Também, todo o mundo sabe, nunca ganhou milhão ou milhinho na loteria. Que se sabe, até o momento, é que, com o seu trabalho quase em tempo integral, ganhou algumas coisas sim, mas nada de muito valor pecuniário.

Ganhou artrites nas articulações, estresse pré e pós-traumáticos, dezenove pontos na carteira e dois na testa, em razão da pressa do trânsito e da inflação nas grandes, médias, pequenas ou infernais cidades. Ganhou ainda, mas não menos importante, a inscrição de seu nome de batistério no SPC/SERASA, por conta de seus proventos serem insuficientes para pagar inclusive as contas essenciais da BRK e da Equatorial Alagoas, estando atualmente literalmente sem energia e água para alumiar e lavar suas partes íntimas.

Ainda tem mais. Sabe-se que, no princípio, em sua vida, sua meta nunca foi o verbo, que Deus, como disse, ele nunca foi, mas sim levar, depois das taxas e descontos da plataforma onde está inscrito, depois de pagar o aluguel do veículo com que trabalha, sua meta era levar livre para casa R$ 100,00. Com muito esforço e 20h de trabalho, conseguia o feito parcialmente, sobrando-lhe "livre" R$80,00. Ficava parcialmente satisfeito, e agradecia a Deus a conquista, pois não era a quantia estabelecida, mas, juntando os dias, chegava ao fim do mês com as contas essenciais pagas.

Hoje, transcorridos três anos, fica satisfeito quando chega em casa vivo, sem crise de pânico, sem calombo na testa, sem dever taxas ao aplicativo, sem multas de trânsito. Enfim e ademais, sem ter visto ou vivido, em que lhe pesem 21h de trabalho contínuo.

Estes dias, há uma semana mais ou menos, estive com ele. Fui seu cliente durante 6km, 5 minutos e algumas palavras. Agora, leio a notícia de que a Apple vale 3 trilhões. É uma noticia assustadora. Nem sei quantos zeros tem um trilhão, imagina três... É claro, e notório, e de conhecimento de toda a nação. Ou não.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 01/07/2023
Reeditado em 02/07/2023
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