SE MEU FUSCA FALASSE
“Se Meu Fusca Falasse” é um filme estadunidense de 1968, dos gêneros comédia e fantasia, dirigido por Robert Stevenson para os estúdios Walt Disney. Conta as aventuras de Herbie, um Fusca com personalidade própria, desprezado pelo dono mau caráter de uma loja de automóveis e piloto de corridas. Mas o que conto aqui é a história de um outro Fusca, o meu Fusquinha. Assim como o personagem da película, - o automóvel, Herbie - Ele também tinha um nome pitoresco, “Restinho”.
Até chegar ao nome do meu automóvel particularmente por mim batizado, vale ressaltar que o Fusca, o carro mais famoso da história da Volkswagen, tem esse nome porque é uma corruptela de Volks; Volkswagen Sedan era "Folks", virou "Fuque" e acabou como "Fusca". O Volkswagen Fusca começou a ser produzido na Alemanha, em 1938.
No Brasil, o primeiro Fusca genuinamente fabricado em terrras tupiniquins, com peças nacionais, teve a sua estreia no ano de 1959. Apenas como curiosidade, a época foram vendidas 8.406 unidades do modelo, então chamado de Sedanum dos casos mais icônicos é o do Volkswagen Fusca, que também foi batizado aqui entre nós com vários apelidos carinhosos, entre eles: “Besouro”, "Bolinha", "Baratinha", “Fafá de Belém” (em referência à exuberância física de certa cantora) e "Fuscão".
Bem, então vamos focar no meu saudoso “Restinho” e nossas histórias. Acredito que o pessoal da minha geração, os jovens dos anos 70, aprendeu a dirigir num desses “Besouros”, que assim como o inseto, que voa desafiando a lei da gravidade, o carrinho esquisito consegue rodar soberano. Hoje eu pergunto: como é possível guiar uma máquina constituída em quase sua totalidade de para-lamas e um “cockpit” que não proporciona quase nenhuma visão para conduzi-lo?
Contudo, ele era objeto de desejo de muitos jovens, afinal possuir um “carango”, além de sua utilidade como meio de transporte, era também uma forma de ostentação e conquistas e para deixar as “minas piradas”, se bem que agora confesso que namorar dentro de um fusca é uma das coisas mais desconfortáveis pra viver um intenso romance.
Adquiri o meu primeiro carro, um Fusca Volkswagen ano 1971, em meados de 1978, à época Ele era mais experiente e tinha mais quilometragem do que eu. Sua cor sempre me deixou na dúvida se seria creme ou bege, no certificado de propriedade constava a cor branca, na verdade era branco encardido. Não tinha sabão em pó ou cera que o fizesse branquear. Meu sonho era o de um dia trocar de carro, assim jogava no bicho na esperança de ganhar uma grana. De tanto jogar no bicho, ainda me lembro da placa do possante, BM 1846, fazia umas fezinhas, 18 no cachorro e 46 no elefante, mas nunca acertei. Foram longos 7 anos de convivência, sem grana para troca-lo por algo mais moderno.
Quanto ao carinhoso apelido que dera a Ele, tem uma explicação, não foi uma nomeação logo de início, ainda inexperiente na direção, eu ralava os para-lamas sem tréguas. Eu mesmo tentava fazer alguns reparos, como um martelinho de ouro dava à minha maneira marteladas sem noção, tascava massa plástica para corrigir as imperfeições, daí, Ele foi ficando amarrotado até adquirir o afável cognome, “Restinho”.
O carro podia não ser moderno, porém, investíamos alguns cifrões para deixar a máquina incrementada. O som, principalmente, tinha que ser de última geração, assim, instalei nele um moderno toca fitas “auto reverse” (a fita cassete virava-se automaticamente para a outra face) da Pioneer, muito caro para os padrões de então. Naqueles tempos era comum arrombarem o carro e furtarem o rádio. Desta forma, para evitar o roubo do aparelho, ele era acoplado à uma bandeja em formato de gaveta instalado sob o painel, possibilitando a sua retirada quando estacionava o veículo. Às vezes, para não ficar carregando a traquitana, a gente a escondia embaixo do assento ou no porta malas. Numa dessas ocasiões, em uma parada que seria breve, deixei o aparelho sob o banco, tranquei o carro e sai. Ao retornar, qual não foi o meu desapontamento, encontrei a porta destravada, levaram o aparelho com todo o aparato, além dos tapetes acarpetados que acabara de adquirir e uma sacola com alguns Tupperware novinhos em folha.
Quando entrava numa curva, a porta do passageiro abria automaticamente e, automaticamente, a gente puxava uma cordinha estrategicamente estendida entre a alavanca do freio de mão e o puxador da porta. Uma das características deselegantes, para abrir a porta do passageiro para a namorada, tínhamos que entrar no carro e destravar por dentro. Nos dias chuvosos era quase impossível ter a visão da pista à frente, muito menos o que vinha atrás, os vidros embaçavam que só vendo, ou melhor, que só não vendo. Viagens à noite era um esforço descomunal, os faróis eram míopes, vesgo e o astigmatismo acentuado.
Vivemos muitas aventuras, dignas de cinema, como no dia em que descendo a Rua da Consolação em direção à casa da namorada, ouvi um barulho de algo se desprendendo da roda, um pouco mais adiante o segundo barulho, sigo um pouco mais e completa-se o terceiro e em seguida o quarto. Quase chegando ao prédio da namorada, o quinto e derradeiro barulho, um estrondo, a roda traseira do lado direito soltara no trajeto os cinco pinos, por sorte caíra sob o automóvel. Desço do carro e olho para cima em direção ao prédio, na janela a minha amada a tudo observava. Não me fiz de rogado, com o carro “estacionado” no meio da rua saio à procura dos parafusos, encontro apenas um. Retiro um de cada uma das três rodas e faço o conserto. Mesmo com as mãos e as roupas sujas de graxa não deixei de namorar naquela noite.
Em uma das viagens ao litoral, na ida o carro portou-se com dignidade, desceu a serra todo pimpão, mas na volta, o bichinho rateou, abiu o bico, mesmo porque se na descida todo santo ajuda, na subida não tem quem acuda. A correia dentada se partiu, não tive dúvida, emendei com um pedaço de arame e consegui subir a serra até chegar em casa. Vale lembrar que era comum no Fusca a bobina esquentar ocasionando o seu aquecimento, mas tudo se resolvia colocando um pano molhado na água fria em volta da peça. Na verdade, não era necessário ser um expert em mecânica para entender defeitos apresentados, o “Restinho” era muito acessível e aceitava pacificamente as gambiarras.
Um fato inusitado, numa madrugada voltando da casa da namorada, trafegava nas proximidades da USP (Cidade Universitária) quando dois policiais da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar - uma modalidade de patrulhamento da Polícia Militar de São Paulo, criada em 1970 durante o governo militar, que agia com muita truculência), me abordam, entram no carro e. tal como nos filmes policiais, pedem para seguir um veículo que passara à toda velocidade momentos antes. Quanto mais eu acelerava, mais os “meganhas” exigiam velocidade máxima no possante. Neste trajeto sei que cometi várias infrações do código de trânsito: alta velocidade, avanço do semáforo vermelho, trafegar na contramão, ocupantes sem os cintos de segurança e passageiro com meio corpo do lado de fora empunhando arma de fogo.
Brincadeiras à parte, por sorte conseguimos alcançar os fugitivos que colidiram em um poste. Os militares desceram com suas armas em mãos e renderam os três meliantes. No mesmo, instante, não sei de onde, surgiram várias viaturas com as sirenes ligadas cercando o local. De uma delas sai um soldado com a escopeta apontada para minha cabeça e gritando: “mano, perdeu, perdeu, mano!” Ainda, ordenando: “deita no chão, deita no chão!”. Claro que não esbocei qualquer reação, sem hesitar obedeci e me acomodei no gélido asfalto numa madrugada paradoxalmente quente e inesquecível. Uma vez esclarecidos os fatos, mesmo trêmulo e quase me cagando, manobrei o carro e zarpei sem ao menos olhar no retrovisor.
Como em todos os contos de fadas o “era uma vez” tem o seu epilogo e, um dia, porém, com muito pesar e uma dor imensa no coração, fui obrigado a me desfazer de “Restinho”. Nosso relacionamento foi de uma cumplicidade ímpar, assim como Ele por vezes me carregou, muitas foram as vezes que eu o empurrei, por falta de combustível ou pela bateria danificada. Na verdade, Ele nunca me deixou na mão, quando não era possível seguir com Ele, o jeito era ira a pé mesmo.
Muitos aventuras e momentos de felicidades foram proporcionados pelo leal companheiro que se mostrou obediente e camarada, capaz de guardar tantos segredos, só faltava falar, ainda bem que não. Do “Restinho” só saudade restou.