O PRIMEIRO LUTO
Passei toda a minha infância sem sofrer com o luto em família. Meu avô materno faleceu dias antes do meu nascimento. Meus bisavós, de ambos os lados, também não os conheci. Assim, cheguei à adolescência sem ter noção do que fosse de fato a dor do luto.
Vivíamos bem próximos dos meus avós paternos, nonos Luiz e Hermínia, no mesmo quintal. Desde que me conhecia por gente, sempre os tive bem ao meu lado. Daí considerar o meu avô mais que um simples avô, mas uma pessoa que muito me ensinou sobre tantas e tantas coisas dessa vida. Grande companheiro.
Mesmo com a idade avançada, para a época, ainda trabalhava como segurança noturno de uma casa de família nos jardins, — bairro de classe alta paulistana. Recordo quando nas manhãs, enquanto eu saia para a escola, ele chegava do trabalho trajando uma farda caqui e um quepe com o emblema “GP” (Guarda Particular). Portava-se com elegância e galhardia aquele uniforme impecável e sapatos pretos brilhando de tanta graxa Nugget.
Era comum no trajeto do ponto de ônibus até chegar em casa, ir cumprimentando cada um dos moradores daquela localidade que, na contramão, seguiam para os seus afazeres. Uma pessoa que transbordava alegria e, falando sério, tinha lá as suas virtudes junto às mulheres. Mas isso é um caso à parte. Trazia sempre às mãos um exemplar de O Estado de São Paulo do dia anterior, o qual, eu voltando da escola o lia com toda atenção. Enquanto ele almoçava, religiosamente ouvia o programa “O Velho Realejo”, na Rádio América, na voz de Salomão Jr., cujo tema de abertura e de encerramento era a canção gravada por Carlos Galhardo, que dava o nome ao programa.
Após o almoço, ele ia descansar e, invariavelmente, nos pedia para manter silêncio, coisa quase impossível para a molecada. Enquanto ele dormia o sono restaurador para enfrentar mais uma noite de trabalho, nos restava fazer a lição de casa ou ir para a rua brincar com os colegas.
À tarde, antes de sair para o trabalho, dava uma espiadela nas crianças, — meninos e meninas, — brincando na pacata rua de terra batida. Sempre tinha uma piada pronta. Contava algumas para qualquer vizinho que passasse por ali, sem antes questionar cada um daquele petiz com quem estaria a namorar. Quando a pergunta era diretamente para o Tute, o menino ficava envergonhado com a face ruborizada.
Outra característica marcante, se aproximava lentamente de algum garoto que estivesse distraído e ao mesmo tempo em que dizia a frase “olha a cobrinha”, soltava um sonoro pum para a alegria da gurizada. Minha avó implicava muito com ele, pois era sabido que ele apreciava uma boa caninha, inclusive mantinha uma ampola bem escondida entre seus pertences. Mas devo confessar, nunca vi meu avô embriagado, todavia a sua alegria era contagiante.
Ainda trago na memória uma série de bons momentos com ele compartilhados e de fatos marcantes. Eu já estava no gozo dos meus vinte e um anos quando no começo de uma noite de um sábado, em companhia de dois amigos, o Eugenio e seu irmão Zé Carlos, pegamos o ônibus pra irmos ao cinema. Coincidentemente, lá estava o meu avô em direção ao trabalho. Juntos ficamos conversando até ele se despedir e saltar no ponto, antes de nós, para seguir ao local do trabalho. Nessa noite, acometido por um AVC, ficou internado por algumas semanas, vindo a falecer aos 73 anos de idade, ainda jovem para os dias de hoje.
Fora então a última vez que vi o meu avô vivo. Fora também o meu primeiro luto em família..