Jogo de cintura
Comecei a trabalhar no hospital como Assistente Social em maio de 2000 e não era fácil. Naquela época ninguém ficava com acompanhante e eu via a família deixar ali seu idoso, a mãe deixar seu filho e retornar pra casa sabendo que somente no dia seguinte teria notícias por telefone ou no horário da visita. Nada me incomodava mais ali dentro do que o choro das crianças, pois minha sala era ao lado da pediatria.
Eu sabia que o Ministro da Saúde já tinha criado a Lei do Acompanhante para idosos, crianças e adolescentes, então consegui uma cópia do documento. Estudei a danada da Lei, elaborei o Projeto de Acompanhante para ser implantado, fiz tudo calculado direitinho, manualmente, ensaiei na frente do espelho minha conversa com o diretor por muitos dias até que criei coragem e fui com a pastinha nas mãos. Eu estava muito entusiasmada, mas foi só começar a expor o assunto pra ser drasticamente cortada e ouvir:
-Nem invente isso, Izis! Não queremos encher isso aqui de gente.
Sai dali derrotada e muito decepcionada. Segui meu trabalho ouvindo o choro das crianças e segurando as mãos dos idosos para que não partissem sozinhos feito bicho. Numa tarde ociosa fui até a portaria e vi quando uma moça chegou chorando e pedindo pra ir na enfermaria só ver o pai que tinha ficado internado por causa de um AVC. A Chefe não deixava e a orientava que no dia seguinte poderia visitá-lo no horário certo. Ela insistia e seu choro doía na minha alma.
Então não deu outra, foi no susto, no impulso corri até minha sala, peguei a cópia da Lei, dobrei, coloquei no bolso, desci rapidamente em direção à saída pelo Pronto Socorro e fiquei esperando. E lá veio ela chorando, xingando horrores. Percebi que ela tentaria entrar por ali e foi então que a peguei pelo braço e fomos pra trás da banca de revistas onde ela continuava detonando todos nós que trabalhávamos lá. Quando consegui acalmar a criatura, comecei meu plano:
-Olha pra mim, fica calma e presta bastante atenção. Esse papel aqui lhe dá o direito não só de ver seu pai, mas também de ficar com ele enquanto tiver aqui, você quer?
-É claro que quero!
-Então vamos fazer o seguinte: você vai ficar aqui uns 15 minutos, eu vou entrar, voltar pra minha sala, aí você volta lá na portaria e fala para a chefe que quer falar com a Assistente social e ela vai me chamar. Quando eu chegar, quero que seja uma atriz, grite comigo, esfregue esse papel na minha cara, fala que com essa Lei você vai chamar a polícia pra mim se eu não lhe deixar subir.
Ensaiamos uma vez e entrei. Tudo aconteceu como planejamos, todas as funcionárias do SAME assistindo a cena e eu fingindo estar com medo, peguei o papel das mãos dela e pedi que esperasse um pouquinho. Corri até a sala do Diretor e dessa vez não bati na porta para representar melhor o meu pânico. Entrei feito bala e disparei:
-Senhor, tem uma mulher na portaria querendo subir pra ficar com o pai, ela esfregou a Lei na minha cara e falou que vai chamar a polícia e se ela chamar vai ser pra vocês, pois eu sou claustrofóbica e não posso ficar presa. Se ela chamar eu me demito, mas presa eu não vou.
O trem foi tão bem feito que minhas mãos tremiam segurando o papel quando ele falou:
-Vai lá, sobe com ela e coloca uma daquelas cadeiras duras ao lado da cama. Vamos ver quanto tempo vai aguentar.
Assim eu fiz, porém levei-a até minha sala e fui firme:
-Olha você vai ficar com seu pai, vai aguentar, vai dormir na cadeira, eu vou comprar um lanche pra você e quando precisar usará o banheiro da enfermaria. Aguenta firme, pois amanhã vamos começar a mudar as coisas.
Ela topou! Encerrei meu expediente e fui até o trabalho do meu marido onde tinha um computador e pedi a ele pra fazer um monte de cópias da Lei pra mim. No dia seguinte trouxe a moça até minha sala, entreguei um café com pão pra ela e expliquei o resto do plano:
-Vou deixar com você uma cópia igual a que lhe dei ontem e na hora da visita, você escolhe alguém que está visitando um idoso, conta que está ficando com seu pai e que ele também poderá ficar. É só chamar a Assistente Social na portaria e exigir que ela autorize, pois você tem a Lei. Entregue a cópia pra quem você escolher.
Novamente ela fechou comigo. Menina boa de serviço e eu boa de corrida pra sala do Diretor:
-Senhor, outro com a Lei nos ameaçando.
-Deixa subir. Eles não vão aguentar.
E a cada dia eu aumentava o número de cópias nas mãos da minha cúmplice que caminhava pelos leitos entregando aos familiares. Durante os 8 dias que o pai ficou internado meu projeto foi literalmente implantado ali dentro. Tudo já estava pensado, o banheiro na lavanderia só pra acompanhantes, as refeições garantidas pelo SUS mediante minha anotação "Acompanhante" no prontuário e foi estabelecido o horário de troca do familiar. Ah, ela visitava também a pediatria e as mães ficavam com seus filhos.
Assim foi feito, no susto e na doideira como muitos dos meus feitos. Tudo dá certo na hora que o Pai permite.
Se tive medo? Não!
Se tive coragem? Também não!
Só fiz o que precisava ser feito.