AS MONTANHAS À MINHA FRENTE
Como a primeira coisa que vejo ao acordar; ao abrir os olhos e, logo em seguida, me levantar da cama, tenho em vista as montanhas que me cumprimentam junto com o sol. É tanto verde e tanta beleza que brinco que consigo pegá-las, e então as esmago com minhas mãos para depois assoprar a poeira e sujar a todos nós. Mas estão distantes. Longe, talvez, até mesmo das lembranças que me visitam todas as noites.
As suposições são ardilosas. Um caminho errado, como uma esquina atravessada que deveria ter sido ignorada ou um olhar indigno de compaixão. E tudo resumido a incrível capacidade de se surpreender com o pior do ser humano, mesmo após anos e anos das mesmas decisões tomadas que esperamos resultados diferentes.
Eu tenho que me levantar, preciso fazer xixi, penso ainda de pernas esticadas. E as árvores, do outro lado da janela, nas montanhas que me esperam, já estão trabalhando a favor da nossa vida, do nosso milagre diário. A manhã já deve ter passado, junto com as nuvens, pelo o que consigo enxergar ainda deitado. Mas acredito que deva ser, pelo menos, onze e quarenta da manhã. Também é preciso regar as plantas, pois já devem ter tomado bastante sol e talvez estejam secas. A rotina requer muita habilidade. E sentindo minha bexiga prestes a explodir, decido carregar meus pensamentos a outro cômodo.
Não tenho saudades, mas as memórias me visitam nos vãos do dia; entre uma coisa e outra, entre as louças sujas que estão sendo lavadas, entre os dentes escovados, entre as bocas do fogão. E eu sinto essa culpa; essa culpa, tão indefinida assim como seu rosto seria em meus sonhos se eu não visse suas fotos pelo menos uma vez no dia. Como as costelas conseguem aguentar o frenesi cardíaco? Que descargas de eletricidade são essas? Correndo nas veias, transmitidas por todas as células como uma reação em cadeia de uma usina nuclear em sua explosão. Eu sinto calor, vontade de vomitar, minhas mãos ficam geladas, e todos os verbos ficam presos na garganta, regurgitando na antipatia que tenho por mim mesmo.
Merda, esqueci o que ia fazer agora.
Da cozinha não consigo ver as montanhas, já lavei as louças de ontem e uso o vapor da água quente para esquentar minhas mãos. E o cheiro do café recém coado me acalma e me alegra.
“Bom dia,” e então, num ato simples, sua voz é o primeiro som que escuto, quebrando o restante de angústia que tenho em meu corpo, despertando do restante de sono que tenho em meu corpo. Mas eu não respondo, não estou preparado para minha voz reverberar pela cozinha. E talvez fique assim até uma da tarde.
Ela me solta e, num ato simples, eu respondo com um sorriso. Com a garrafa térmica cheia de café, pego nossas canecas e nos sirvo de mais um dia.