Faz até sentido

Nestes recentes dias, o mundo ficou muito preocupado com o desaparecimento do Submarino Titan, que desapareceu durante expedição ao Titanic, no último domingo (18/6). A bordo, estavam quatro milionários e um bilionário. Todos declaradamente aventureiros. Até anteontem havia esperança de encontrar os desaparecidos, e com vida. Mas a esperança naufragou rapidamente, e anteontem mesmo as autoridades americanas confirmaram que os milionários e o bilionário tripulantes do submersível morreram todos.

Segundo as autoridades competentes, o submarino implodiu em decorrência da alta pressão no fundo do mar. Ainda segundo os especialistas, as mortes foram instantâneas e indolores, o que me deixa meio de queixo caído.

Como assim existem mortes indolores? Para mim, ao ler a notícia, me chama a atenção esse adjetivo.

Alguém saudável provavelmente, porém, se viesse a botar reparo na notícia, seria esperado que se detivesse em outros termos, como "implosão" ou "bilionário". E se perguntasse: "O que é 'implosão'? E 'bilionário'?" Então, iria ao Aurélio, e estaria satisfeita sua curiosidade.

Mas o mesmo não se dá com alguém meio afetado pela inflação, pelos sistemas bancário, imobiliário, judiciário, civil; pelos valores das comodities. Alguém assim procura pelo em ovo, para quem o vocábulo "indolor" só pode figurar em algum contrato bancário/imobiliário, a fim de engabelar o contribuinte. Tipo: "Taxas indolores", "Juros indolores", "Parcelas indolores".

Quando se é descapitalizado, o termo "indolor" parece soar como chacota. Porque tudo tem um preço, e geralmente inflacionado. A vida do descapitalizado é cheia de dores. Dores físicas, por causa dos trabalhos duros que lhe são impostos; dores farmacêuticas, ao constatar o preço dos medicamentos na prateleira das farmácias; dores morais, ao ser impedido de exercer seu direito constitucional de ter uma vida digna. A morte, inclusive, ao descapitalizado não parece tão nefasta, tão odiosa, tão má. Serve, dada medida, como recompensa por uma vida de privações e injustiças.

Milionário algum, bilionário algum provavelmente saberá ou intuirá o que estou querendo dizer. Mas se fosse um descapitalizado, e se possível analfabeto, se frequentasse as prateleiras dos supermercados, das farmácias, se pagasse impostos à taxa que os descapitalizados pagam, se fossem usuários dos serviços públicos que eles mesmos fabricam para os descapitalizados, entenderiam quase que instantaneamente que a vida não tem nada de aventura para quem sobreviver, em si, já é uma aventura, muita das vezes nada divertida.

É claro que, quando se é milionário ou bilionário, quando o sujeito não sabe sequer o valor do salário mínimo, quando não tem preocupação alguma com a fatura do cartão de crédito, quando ele sabe que a vida tem um preço, e aqui digo preço no sentido real do termo, e que ele pode pagar, ironicamente poderá sentir-se morto. Porque, para os capitalizados, justamente, tudo tem um preço, e eles podem pagar esse preço sem lhes comprometer o fornecimento de energia elétrica, a despensa, os fármacos...

Daí advir a muitos desses milionários e bilionários o desejo de atividades arriscadas, não no campo do Mercado, claro, porque nesse terreno eles não arriscam, querem sempre auferir os maiores lucros, dividendos. Mas no campo da vida propriamente o vazio se instala. A vida perde o colorido, se é que tivesse, e eles procuram atividades que os façam sentirem-se "vivos".

Talvez a morte desses milionários e bilionário, classificada como instantânea e indolor, não devesse me parecer tão fora de órbita. Olhando mais de perto, faz até sentido.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 24/06/2023
Reeditado em 24/06/2023
Código do texto: T7821037
Classificação de conteúdo: seguro