Um universitário
Um universitário
Jocenir Barbat Mutti
Nov/07
Meus filhos estão formados e com suas vidas bem encaminhadas. Constato com satisfação que a qualidade de vida que eles tiveram para cursar o terceiro grau foi bem superior à que eu tive. Quando saí do interior para estudar na capital, experimentei algumas dificuldades. Mas na época nunca reclamei! O curso que eu estava iniciando na UFRGS, Engenharia, era de longe o de maior índice de reprovação. A dedicação exclusiva aos estudos, principalmente nos dois primeiros anos, foi uma condição sine qua non. Minha mesada era pequena, mas a garra e energia que eu tinha demovia montanhas.
Eu e meu primo alugamos um cubículo no décimo andar de um edifício fininho perto da Escola, o “treme-treme”. O sol naquele quarto só poderia entrar se refletido num espelho que fosse devidamente posicionado no edifício da frente. No primeiro dia em que ali dormimos me acordei de manhã cedo acreditando estar no meio de um terremoto. A cama do meu primo que ainda dormia começou a se movimentar na minha direção. Tudo isto, somente porque um simples bonde estava passando lá em baixo. O edifício fez jus a seu nome...
Fui o único entre os cem alunos do primeiro ano que conseguiu passar por média. Quando retornei nas férias à minha cidade natal, constatei que estava com princípio de pneumonia.
No restaurante universitário, o RU, o cardápio era servido numa bandeja de aço inoxidável de segunda a domingo: feijão aguado, arroz “juntos venceremos”, carne cozida salgada e uma salada de tomate com alface que parecia um papel molhado. Até hoje me lembro do ruído metálico daquele ambiente; uma pessoa desavisada que ali na frente passasse, iria imaginar que se tratava de um ensaio de escola de samba, guris batendo na lataria. Azia, gastrite e dor de cabeça eram constantes, normais, mesmo assim eu não estava nem aí, muito pelo contrário. Era um universitário feliz.
Nos mudamos do treme-treme e começamos a perambular pelas casas das tias; mais tarde, junto com mais três estudantes conterrâneos, alugamos uma república.
Prontifiquei-me a atuar no centro acadêmico, objetivando conseguir estágios nas fábricas cadastradas. Numa dessas visitas, lá estava eu, tentando vender meu peixe para o dono de uma fábrica. O enorme alemão, fumando um charuto, sem titubear me respondeu:
- Eu preciso sim de um desenhista, mas quero contratar o senhor, que está aí batalhando para os outros.
O homem me surpreendeu. Eu não esperava mesmo aquela proposta. No outro dia, já estava lá, trabalhando a mil.
Pronto, agora eu já era um homem com um salário de cinqüenta centavos a hora. Não demorou muito o aumento para setenta e cinco. No final da semana vinha o pagamento dentro de um envelope daqueles de cartas aéreas, cheio de notas pequenas. Como era bom! Era dinheiro do meu suor. Meu primeiro salário!
Nessas alturas eu, com vinte anos, magrão, cheio de gás para dar e vender, trabalhando de dia, estudando de noite! E ainda arrumava tempo para os torneios de xadrez da universidade, jogo aprendido com meu pai, campeão lá na nossa cidade.
Minhas notas caíram, pois me acordava muito cedo e tinha que pegar dois ônibus para chegar à fábrica, no bairro Navegantes. Ia até o centro da cidade, onde eu fazia meu desjejum, sempre no mesmo bar. A primeira vez que lá cheguei, pedi discretamente para o atendente um bolo tipo Lavoisier e um grande copo d’água. O homem, acostumado com o cardápio da casa, gritou:
- Um canhão e meio Guaíba para o rapaz aqui!
Apontou com o dedo polegar na minha direção. Baixei a cabeça, fiquei vermelho, me senti nu num palco lotado. Refeito do golpe, entendi que aquele bolo lembrava uma bala de canhão e o copo era tão grande que parecia assimilar meio Guaíba.
Hoje, dificilmente reclamo de uma comida que é posta na minha mesa. Meus filhos não, qualquer detalhe que não gostem eles torcem o nariz. Mas cada um na sua, todos tem seus motivos!!!