TIA LUCINDA
Manhã de final de outono, quase inverno.
A geada já derreteu-se e o sol cálido das dez da manhã é convite a uma boa lagarteada.
A risada sonora de dona Vica, delata aconchegos no terreiro da casa de tia Lucinda.
Entonces...
É pra lá que eu vou.
No melhor estilo repolho (casaco sobre a blusa,duas calças, dois pares de meia, botina,luva e cachecol) vou me achegando diante do portão ao longo da cerquinha de ripas.
“Bolinha”, a cachorra de estimação,é a primeira a acolher-me com seu latido festivo.
Alguém “esquenta o corpo” rachando lenha num terreno vago ao lado da casa.
Ardem as chamas no meio do terreiro.Sobre a trempe, na panela de ferro ( daquelas com tetinhas) os pinhões rebolam-se freneticamente como que sentissem cócegas.Espalham pelo ar o odor característico do fruto mais amado no frio sulino.
Tia Lucinda, enfiada em seu casacão marrom, com o inseparável lenço à cabeça, sentada em seu banquinho tripé, é a personificação de uma majestade naquele reino onde o palácio é de tábuas,sem pintura e as couves – viçosas – quase alcançam os beirais.
A carijó arma um alvoroço e foge deixando um ovo fresco quase à mostra na boca da fornalha.
Dona Vica, entre um sorriso e outro, troveja um chimarrão com muitas ervas de cheiro no entorno da cuia.
Vez e outra lança mão na tigelinha e degusta mais um bolinho de polvilho, especialidade da dona da casa.
Cresce o pão na amassadeira, o feijãozinho borbulha no caldeirão de ferro sobre o fogão e tia Lucinda, de concha em punho, apanha na panela de tetinhas ao meio do terreiro, um punhado de pinhões cozidos e oferece-me com a pergunta:
-Queres um cafésinho “bem doce “ pra acompanhar?
[ Ela sabia de antemão qual seria a resposta, então...]
Não demorava e juntávamos – meus primos e eu – para assembléias que decidiriam quais seriam as atividades do dia.
[ A mata, som seus frutos e exuberância, era sempre a escolha do dia ]
O campo, com grama ressequida, era um vasto tapete por onde tínhamos pés no chão e corações no infinito.
Guincha lá fora , neste instante, um gavião solitário. Seu guinchado melancólico me arranca abrupto da rua de minha infância e meus devaneios evanescem.
Novamente, diante do monitor, encaro agora a dura realidade, a incerteza e os temores destes tempos em que estamos vivendo.
Mas...Sou curioso.
Abro a porta, ganho o jardim, e busco o solitário senhor do começo de tarde.Sua imagem me chega ao campo de visão feito um pontinho escuro perdido no espaço azulado deste domingo.
O guinchando prossegue à distância.
Postado sobre a calçada, liberto dos labirintos do peito aquele gavião que mantenho preso.
Ele voa ! Alcança o outro.
Então, lado a lado, guinchamos nossas soledades neste domingo azul, tão distante da panelinha de tetas da casa de tia Lucinda, tão mudo nas gargalhadas de dona Vica e ao mesmo tempo tão presente na azulada lembrança que me persegue , daqueles dias em que o único comprometimento era só dar uma boa lagarteada...
No terreiro da casinhola de Tia Lucinda.