Sete a Um
Ocorreu neste país uma Copa do Mundo FIFA no ano de 2014. Neste ano, sete a um virou sinônimo de troça em virtude do desastroso resultado da seleção local e se percebeu com veemência que o Brasil é um país de pleno subdesenvolvimento, deparando sua realidade de profundas desigualdades e crônico inadimplemento de direitos humanos fundamentais. E também neste ano, nasceu Nicole.
Nicole nasceu no dia 8 de junho. A goleada ainda estava menos vexatória em seu primeiro choro no mundo. Poupada do sete a um, nasceu em um lar problemático. Poucas riquezas, muitos problemas. Seus pais não eram casados. Do pai recebera o amor, o Corinthians. Da mãe recebera o resto, sustento e cobrança.
A relação de Nicole com seus pais não era muito boa. Seu pai sempre foi muito ausente, pouco aparecia. Sua mãe, por sua vez, muito preconceituosa e pouco permissiva. Na verdade, não enxergava em Nicole uma filha, mas uma rival, uma inimiga, uma pessoa para suportar suas vontades. Isso, conjugado aos problemas financeiros, fazia a vida demasiadamente difícil.
Futebol era para Nicole uma comunhão que proporcionava escapismo daquela vida difícil. Eram momentos de alegria mesmo nos piores infernos dos dias, era poder ter um respiro de se sentir desconfortável consigo mesma e com sua vida.
Ser mulher, independente da idade, não é fácil. É o sentimento de ser inferior o tempo todo. Em lares desestruturados e situações sociais vulneráveis, é ainda pior. E essa sensação pode se corporificar em qualquer momento. Para Nicole, a ocasião de mais abalo foi quando seu time de coração nublou respeito às torcedoras femininas no momento da contratação de um treinador condenado por violência sexual para a equipe masculina.
Já nutria muita simpatia pelas profissionais femininas por se ver representada nas “Brabas” (designação dada às jogadoras do time), porém passou a torcer integralmente para elas ao contemplar o amargor com o machismo estrutural do clube, e por observar tamanha coragem com que suas membras se manifestaram sobre o ocorrido.
Apesar de muito ausente, seu pai era muito caridoso com ela. Deu-lhe o time, entretanto nunca permitira que fosse para um estádio. Acreditava ser muito perigoso, repensou quando ela pediu para ver um jogo das meninas. A violência não se concentrava nos jogos da equipe das mulheres.
Pai e filha foram ao jogo no dia 30 de abril, contra o Cruzeiro. Nicole se compadecia de todas as jogadoras, conseguia se ver em cada uma delas. O então treinador, que sempre tergiversara e treinara brevemente o time masculino, já não fazia mais parte das fileiras do clube, todavia a desconfiança com o desprezo pelo gênero feminino é algo indelével. Gritar no estádio foi levar a comunhão pelo time para um novo nível: a percepção que participar do ecossistema do futebol feminino representava não apenas o seu amor e sua entrega, mas era participar da luta de sua emancipação como mulher, mesmo que ainda não adulta. Ela não precisava acreditar em um homem para representá-la nos campos ou nas arquibancadas. Ela mesma poderia fazer isso.
O dia ainda poderia ter revezes, no entanto tinha marcado aquela data como especial em sua vida. Naquele momento existiu seu segundo nascimento. E, assim como no primeiro, o resultado foi sete a um.
[Texto perdedor do 2º Concurso de Crônicas do Museu do Futebol - 2023]