Magia da escrita

Dou tempo de escrever, levanto os olhos do papel para o relógio de parede: cinco horas. As sonoras pancadas começam a soar uma a uma, como antigamente em nossa casa.5

É bem antigo. Foi do meu avô, depois do meu pai, hoje é meu e um dia será do meu filho. Seu tique-taque imperturbável me acompanha todas as horas de vigília o dia inteiro e noite adentro, segundo a segundo, do tempo vivido por mim. [….]

Permito entrar no mundo da recordação, afasto-me do relógio e caminho até a janela, olho para fora.

Estou vendo casa onde nasci, em vez de ver os costumeiros edifícios, cujos fundos dão para o meu apartamento em nesta selva de pedra, o que eu vejo é uma mangueira ─ a mangueira do quintal de minha casa, na colônia da fazenda. Vejo até uma manga amarelinha de tão madura, como aquela que um dia quis dar para a menina que paquerava e por causa dela acabei matando uma rolinha. Daqui da minha janela posso avistar todo o quintal, como antigamente: a caixa de areia que um dia transformei numa piscina, o bambuzal de onde parti para o meu primeiro voo. Volto-me para dentro e descubro que já não estou na sala cheia de estantes com livros do meu apartamento, mas no meu quarto de menino: a minha cama ainda desarrumada, o armário de cujo espelho um dia se destacou um menino igual a mim….

Vou pra sala. Vejo meus pais conversando de mãos dadas no sofá, como costumavam fazer todas as tardes, antes do jantar. Comovido, dirijo-me a eles:

─ Papai…. Mamãe….

Mas eles não me veem. Nem parecem ter-me ouvido, como se eu não existisse. Ganho o corredor, passo pela copa onde o relógio está acabando de bater cinco horas. Atravesso a cozinha, vendo a dona Benedita a remexer em suas panelas, sem tomar conhecimento da minha existência. Desço a escada para o quintal e dou com um garotinho agachado junto às poças d´água da chuva que ocorreu há pouco, entretido com umas formigas. Dirijo-me a ele, e ficamos conversando algum tempo.

Depois me despeço e refaço todo o caminho de volta até o meu quarto. Vou à janela, olho para fora. O que vejo agora é a paisagem de sempre, o fundo dos edifícios voltados para mim, iluminados pelas luzes do entardecer de bonito por sol. Ouço o relógio soando a última pancada das cinco horas. Viro-me, e me vejo de novo no meu apartamento.

Caminho até a mesa, debruço-me sobre o laptop que abandonei há instantes. Leio as últimas palavras escritas no papel:

…. Até desaparecer em direção ao infinito.

Sento-me, e escrevo a única que falta nessa história verídica.....

Jova
Enviado por Jova em 16/06/2023
Reeditado em 16/06/2023
Código do texto: T7815137
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