O CADEIRANTE E A PORTA FECHADA

Nossas crônicas falam do todo porque falam de nós...

Vez ou outra a vida sopra aos nossos ouvidos o essencial que se encena logo ali, e que, embora sob nossos narizes, muito pouco se enxerga.

Foi assim que , naquele dia, o cenário me deu o tema.

O que presenciei soou-me com um grito de urgência. Seria necessário escrever sobre...

Era um dia de encontro, de burburinho, de aulas, de parada em vários estandes para se reconectar com o "estado da arte", dia de , dentre "comes e bebes", rever amigos.

De repente aquela necessidade de procurar um sanitário.

Olhei para as indicações várias e, num espaço de acesso a um deles, vi um cadeirante tentando abrir a porta dum recinto sinalizado como adaptado às suas necessidades.

Com muito esforço, a pessoa já apoiada com os braços na sua cadeira de rodas, tentava alcançar uma melhor posição para forçar a maçaneta da porta.

Não nos foi difícil perceber que ela estava trancada.

Um nítido sentimento de desolamento se via nas nossas faces e eu, percebendo a sua desistência, tentei descobrir o que ali ocorria.

A pessoa seguiu seu destino e sumiu no corredor...

Na tentativa de procurar pelo responsável pelo espaço, para contar o ocorrido e encontrar uma solução, depois dum bom tempo, o diálogo seguiu exatamente assim:

-Por gentileza, quem é o responsável pela administração do sanitários?

-Sou eu, eu que mando aqui.

-É que o sanitário para necessidades especiais está trancado.

-Sim, está. Qual o problema?

-É o que eu gostaria de saber, algum problema técnico?

-Não, as pessoas "comuns" estão usando ele.

-Com assim?- perguntei já indignada.

-Sim, tá todo mundo usando ele, então eu mandei trancar.

-Mas, e as pessoas necessitadas? Havia uma pessoa tentando entrar que já desistiu.

-Ah, elas tem que pedir a chave, ora!

-Pedir para quem, se não há sequer um aviso e absolutamente ninguém presente por aqui para orientar? indaguei.

-Ah, é só procurar e perguntar pra quem ela encontrar...

-Não é possível, eu não acredito no que ouço, isso não está certo.

-Por que não está?

-Porque a solução que os senhores deram é mais grave que o problema do uso indevido do sanitário.

Nesse tempo a governança providenciou o destrancamento da porta, no exato momento em que a pessoa retornava ao sanitário, após ter rodado um bom espaço sem ter encontrado nenhum outro local destrancado e destinado à sua necessidade pessoal.

Ao perceber minha "intromissão" no caso, gentilmente me agradeceu pela abertura da porta.

Parei para pensar na figuração daquele fato.

Quantas vezes, nas nossas vidas, as "governanças" apresentam soluções piores que os problemas a se sanar?

O problema a se sanar: "porque todo mundo entrava no sanitário".

A solução, uma equivocada emenda pior que o soneto: o cadeirante- para quem o recinto era embasado- ficou sem poder entrar.

Ali se via, a olhos vistos para quem quisesse ver, a configuração do cúmulo da não governança.

Uma falta de técnica e de empatia de assustar.

Uma governança que negava os Direitos que embasavam a própria existência do recinto adaptado.

Figurativo...mesmo. Senti a vida teatralizando a si mesma.

Quantas vezes somos desrespeitados sob belas "retóricas", sem quaisquer repercussões práticas, sequer as em nome das necessitadas minorias?

Falta gestão competente em quase tudo...

Volto ao pensamento inicial do meu texto. O que me movimentou...indignadamente.

Sim, nossas crônicas falam do todo. Do todo que todos juntos somos.

E o todo, nunca tão urgentemente, depende dos olhos e das ações de cada um de nós.