BIBLIOTECAS SEM ALMA

Foi noutro dia que ouvi alguém dizer que, com a internet (com seus e-readers e e-books), o livro físico deixaria de existir. Como não gosto de frases que remetem ao fatalismo aniquilante de qualquer outra possibilidade, resolvi correr atrás e organizar o que tinha escrito para a impressão e publicação de um livro físico, antes que o bonde da internet passasse por cima de todos os livros físicos, pois se isso ocorresse (e sei que isso nunca ocorrerá!), sadicamente gostaria de ver o meu livro físico lá também, deitado nesses trilhos, apenas pelo simples prazer de vê-lo perecer ao lado de grandes obras – já que ele não pode compartilhar das mesmas estantes de bibliotecas. Então, com orgulho diria: ele se foi, mas foi em boa companhia!

 

O que mais me impressiona é que as pessoas mantêm uma relação esquisita em relação ao livro. Na verdade elas têm medo do que pode encontrar nesse valioso instrumento de cultura que, para mim, é o mais democrático e respeitoso que existe. Conheço pessoas que têm uma biblioteca inteira em casa e, pelas conversas, me faz desconfiar que não leram um livro sequer. Falta alma na biblioteca, falta vida!

 

Como disse, o livro é democrático e respeitador. Democrático porque está disponível e considera a decisão e escolha do leitor; respeitador porque ele só adentra no mundo do leitor se este tiver coragem e se der ao trabalho de abrir o livro e dele desfrutar de seu conteúdo. Digo coragem porque ler um livro não é para qualquer um. É preciso coragem para estar aberto ao desafio de aventurar-se em desvendar a intenção do autor, é estar disposto, em contraponto, a mergulhar em si mesmo e, assim, talvez, perder o fôlego, imiscuindo-se nos meandros da história. Enfim, ler um livro é estar disposto a libertar-se, ou melhor, conhecer-se! Tenha certeza que nem todo mundo está disposto a isso, visto que pensar cansa, principalmente quando isso se refere a si mesmo. O espelho é tortura para Narciso!

 

Disso se depreende que, infelizmente, para alguns, nesses tempos digitais e de redes sociais, é preferível (leia-se mais fácil) comer no tacho da senzala, mesmo à custa de ceder a negrinha (leia-se: dignidade) aos prazeres do senhor da casa grande, a ter que lutar e sair da fazenda (leia-se: comodismo) e juntar-se aos quilombolas. Na verdade a liberdade e a identidade de cada um se constrói a partir do encontro com o outro, onde a história de cada um é polida na relação com outras tantas histórias, tão presentes nos livros.

 

Na mesma internet encontrei (e lá se encontra de tudo, bom ou ruim, exceto o que está guardado na cabeça de cada um) debates de toda natureza acerca do futuro do livro. Verifiquei que o fenômeno de sua extinção também tivera guarida quando da invenção de Marconi, ou mais tarde, no surgimento da televisão. Ainda assim, o livro continuou firme e forte.

 

Para mim, o escritor (esse teimoso!) é aquele último personagem da história que será chamado quando todos os outros sucumbirem no árduo ofício de decifrar o mundo. Nem cientistas, nem filósofos, nem teólogos, nada disso; o escritor, este sim, é um decifrador de mundos, reais ou fictícios, líricos ou dramáticos, poéticos ou prosaicos, não importa, ele sempre buscará decifrar o enigma do mundo.

 

Mas o que importa decifrar os mundos, senão apenas pelo fato de que, na complexidade infinita do ser humano, este consiga, assim, conhecer-se a si próprio? Sim, o aforismo délfico, feito popular à cultura universal por Sócrates, nos escritos de Platão “conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses” ainda vale e valerá em todos os tempos.

Vivam os livros, físicos ou digitais, mas que eles sejam efetivamente lidos, e não sirvam apenas como peças de decoração, em bibliotecas sem alma.

 

Crédito da imagem:

https://sfpl.org/es/acerca-de/historia-de-la-biblioteca-publica-de-san-francisco