PENINHA DA SORTE (crônica)
Vale a pena ter uma peninha da sorte. Eu a tenho; eu sou um sortudo. Porém, eu a ganhei de um precioso carrapatinho. Vive grudadinho no avô e a todos inquieta, transtorna, enche o saco. Não só a mim: pergunte às professoras, fonoaudióloga, amiguinhos, primos e primas. Pergunte à sua irmãzinha, coitadinha, que por aguentá-lo merece louvores: Ave Maria! Ave Maria! Ave Maria! com um final fervoroso: “Rogai por ela e que bem valha, para a Isabella (que veio bem depois dele) a sua misericórdia, que bem e urgente valha todo o seu poder protetor de Deus.”. Rio do meu exagero, gargalhando, claro! pela minha licença poética em ação.
Vou dar uma clara ideia da sua vitalidade? Contarei sem aumentar um ponto:
— Certa vez, ele entrou amarelo pela porta do hospital, com os seus três anos e meio de experiência em nos encher, andando e falando, e brincando com a médica. Depois de diagnosticado, vai andando e falando, e brincando com todos até à Unidade de Terapia Intensiva. Subiu sozinho na cama para estabilizar o seu diabetes com 958 de contagem. Eu costumo dizer que a contagem glicêmica voltou e sempre volta ao normal por não o aguentar, na verdade.
Enche e como enche. No entanto, ninguém quer ficar longe dele, muito menos eu. É um carrapatinho dos bons. Tê-lo grudadinho por perto é uma honra. Quem é a figurinha tão especial? Psiu!!! Cale-se o Universo perante o meu orgulho de ter nove netos. Ele, é um deles. Seu nome é Ricardo Henrique, o meu afilhado Henrique.
Recebi dos netos a oportunidade de estar no hospital na hora de seus nascimentos e ele, quando chegou no quarto, sem o banhinho tomado, embrulhadinho na manta azul de céu-feliz, tive a oportunidade de ser o primeiro a carregá-lo — tenho a foto para comprovar —, e ajudar a enfermeira a dar o seu primeiro banho. Então, conto a historinha que ele mais gosta de ouvir do avô:
“Quando chegou a hora de enxugá-lo, a enfermeira pensando que eu era marinheiro de primeira viagem como avô, tirou a toalha receosa que poderia machucar o seu umbigo e, com os dois, fartos e enormes seios, debruçava-os sobre o netinho, atabalhoada, pressionando as tetas em seu rostinho. Tomei de volta a toalha dizendo com calma: ‘Deixe-me terminar, pois o meu neto por ser o primeiro recém-nascido a se sufocar com as tetas da enfermeira ao invés de com o leite da mãe inexperiente’.”
Ele adora quando eu conto emocionado essa história. Conto-a sempre. Quanto mais e mais eu a conto mais o vejo crescer. Quanto mais ele cresce mais eu me rejuvenesço. O lado bom de ser avô é envelhecer se rejuvenescendo por causa dos netos. Contando as suas historinhas. Até hoje é pequeno aos meus olhos, um desejo do avô que não quer ver os netos crescerem como os seus pais. O danadinho cresce como um rebento de girafa espigada, e certamente vendo o seu pai, constato que o meu filho girafado, também, o é. Teve, o Henrique, a quem puxar!
É um anjo quando está dormindo, mas que acordado endiabra. Ligeirinho, percorre em segundos as distâncias no que somos obrigados a confinar as nossas crianças, num ilusório mundo seguro que insistimos chamar de lar: coisas da vida moderna.
Eu? Bom! Eu adoro o seu jeitinho de anjo Mensageiro das Boas-Horas.
Descrevo-lhes uma particularidade:
“Ele é o brasileiro que jamais irá ignorar a Língua Portuguesa e uma vez ou outra se arrisca a falar o bom português, mas, imediatamente, volta-se ao seu dialeto. Qual? O Ricardo Henrique fala o henriquês. Sua linguagem é própria e rica em detalhes, de sons, que deixa a fono doidinha e até ela coitadinha, precisa da ajuda de outra fono para si mesma e de psiquiatra. Tudo bobagem das más línguas, pois eu o entendo perfeitamente, eis que não usamos frases: Falamo-nos com olhares; brincadeiras; corações e uma única afinidade misteriosa de outras vidas.”.
Vejam outro exemplo: Ele me dizia certa vez que o seu ‘pic’ estava bem, que podia comer bem, que da segunda insulina não precisava e, antes de eu pensar, lascou-me o seu pedido:
— Faz o macarrão com molho de salsicha cortadinha, bacon e cebola com pouco alho, vovô? como um verdadeiro garoto propaganda da lanchonete MacVovô. Respirou-se, num raro momento, pois quase sempre as suas frases não aceitam vírgulas e pontos finais. Mirou-me com o seu conhecido olhar de pidão irrecusável, alertando-me: “Só que a salsicha eu tiro porque delas eu não gosto”. As suas palavras inundaram-me de mais amor, e de pura admiração. No meu grande esforço por represar gargalhadas, vou com ele dialogando num compasso musical entre um carinho e aquela intensa vontade de beijar apertado:
— Por que não fazer de vez sem a odiosa salsicha? e ele retruca sabiamente em sua linguagem que a excluindo, qual gosto teria o espaguete com salsichas sem poder tirá-las uma a uma? Pronto! foi o que me bastou: Gargalhei até me cansar.
Logo depois, ainda com restos dos meus risos, ele parou absorto por algo que o cativou. Fixou olhinhos vivos de sapeca, abaixou-se, pegando a peninha do rabinho de algum pardal, olhando-a sob todos os ângulos! Contava, cada penugem delicada e macia. Estendeu-me a mãozinha, ofertando-a como mimo ao avô coruja que rapidamente perguntou:
— O que eu faço com isto? e ele no seu henriquês por mim sempre compreendido, menos pela sua fono doidinha, disse-me como o gran finale de uma sinfonia: Para dar sorte!
Ah! fazer o quê? Só restou pegar com ternura o precioso mimo e nas páginas de um dos meus livros colocá-lo para todo o meu sempre.
E, até hoje...
Nas tardes serenas de arrebóis ímpares e belos de minha querida Jundiaí, além das revoadas já cansadas dos pássaros significando-me boa-noite, debruço-me num mundo interior de sentimentos acompanhados pela próxima declaração que brotou da minha alma:
— Querido neto, Ricardo Henrique! dono do henriquês tão gostoso de ouvir, eu sei que cresces cada dia mais, mais rápido que o Flash. Acho-me, plenamente, conformado por saber que a fono tudo vai fazer para o teu henriquês ser um dia uma Língua morta, já que a doidinha é capaz. Porém... A peninha do descuidado pardal que sai perdendo partes do rabinho vida afora, nas páginas do meu livro de contos Doce Encantamento para sempre me encantará.
E, assim que o arrebol finda-se aquietando cada ave em seu ninho, eu me dou a merecida boa-noite! mais gostosa que a macarronada que acaba perdendo as salsichas e durmo feliz por ser o seu avô.