O PROMOTOR E O RÉU COM FACÕES NAS MÃOS
Zé era um moço, talvez ainda na adolescência, criado solto no mundo, sob as agruras da vida. Matou um homem.
Tiveram uma desavença e o desafeto estava deitado em um jirau. Zé usou um facão.
Eu era um jovem também, Promotor de Justiça em uma comarca do interior do Estado do Mato Grosso do Sul. Insatisfeito, meio perdido, buscando a realização de outros sonhos, do que ser uma autoridade do sistema jurídico de um país que colocava pobres na cadeia e deixava os ricos vivendo nababescamente e oprimindo.
Faltava-me, naquela época, conhecer a teologia de Jürgen Moltmann, que prega a sua Teologia da Libertação para alcançar oprimidos e também os opressores.
Fui de uma geração em que fomos chamados a nos indignar contra os desniveis e as injustiças. Eu queria mais, queria ser político, queria transformar o mundo, lutar por igualdade social. Com todo o horror de um homicidio eu via o Zé também como vítima. Não dava mesmo para continuar no Ministério Público.
Atuei na acusação do julgamento pelo Tribunal do Júri que condenou o Zé a doze anos de prisão. Minha atuação ali estava manchada, não estava atrás apenas de justiça, queria também deixar uma marca, uma imagem, estava saindo para a advocacia, meu sonho de menino. Fiz um um discurso de acusação terrível.
Nesse tempo, meus irmãos da igreja faziam um belo trabalho na cadeia, pregavam o Evangelho para aqueles excluídos. Aqueles que se perderam em algum momento da vida, aqueles desamparados criminosos. Era necessário um resgate, não para colocá-los de volta ao mundo do crime, mas um resgate que os tirasse dos presídios e da vida desastrosa para a integridade da Palavra.
Zé mandou-me um recado:
- Diga ao promotor que no dia em que eu sair daqui ele é um homem morto.
O velho Rui, meu pai, havia me ensinado:
- Emerson, todo homem tem medo, mas não pode deixar que outros percebam.
Mandei um recado de volta:
- Diga ao Zé que é possível que ele faça isso, mas diga também que eu não sou defunto sem vela e nem durmo em jirau.
Passados três anos, nos quais estive distante da minha congregação, voltei. Pediram que eu cantasse em homenagem aos visitantes. Atrevidamente e desculpando-me pela falta de dom, cantei.
- "A melhor oração é o amor. Tu precisas orar, mas tu deves lembrar, que a melhor oração é o amor".
Olhava para aquele visitante, em pé ali ao meu lado, e me perguntava: eu conheço, quem é? Eu o conhecia, sabia disso. Até que, cantando e maltrantado um violão: Mas, esse é o Zé, o que está fazendo aqui?
Zé estava, pela primeira vez, saindo da prisão para frequentar um culto religioso. O ex-promotor que o acusara cantando: "tu precisas orar, mas tu deves lembrar que a melhor oração é o amor". Desafinei, cantei e, ao final, fui até o Zé e lhe disse:
- Zé, esse povo aqui é muito bom, essa igreja faz bem. Não é porque você me encontrou aqui que vai deixar de frequentá-la.
O meu réu respondeu:
- Doutor, se o senhor não tivesse me condenado naquele dia eu não estaria aqui. Agradeço a Deus por isso.
No sábado seguinte eu estava fotografando o batismo do Zé, nas águas de um lago de peixes do nosso saudoso irmão Pedro Aragão.
Agora, irmãos em Cristo, desenvolvemos uma amizade natural daqueles que foram perdoados pelo maior Juiz do Universo, nosso amoroso Pai.
Tempos depois, saindo da igreja, perguntei:
- Zé, o que você anda fazendo?
- Estou mexendo com rapadura, mas tenho falta da cana. Ele respondeu.
Combinamos, no dia seguinte, um domingo, iríamos até a minha chácara. Ali eu tinha um canavial considerável e sobrava cana.
Pela manhã, peguei meu facão e o coloquei na caminhonete. Fui à casa do Zé, ele chegou com seu facão na mão. Fomos à chácara, descemos até o canavial, abri a carroceria e os dois, ele e eu sozinhos no meio do mato, cada um com seu facão, cortávamos a cana.
Aí me veio o pensamento: o Zé havia me ameaçado de morte. Foi só isso, a lembrança passou fugidia, foi embora rapidamente. Agora havia confiança de irmãos, o Evangelho nos dera o poder do perdão e a alegria da paz.
Terminamos o corte e colocamos nossos facões na caminhonete. Voltamos para a cidade. Ajudei-o a descarregar a cana e vivemos alguns anos naquela congregação, membros da assembleia de Cristo, a igreja, com a "paz que excede todo o entendimento".
Não por outra, o apóstolo Paulo escreveu aos romanos:
Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego. Rm 1:16.
Poder de Deus, no grego dýnamis (δύναμις), o mesmo de dinamite, a explosão de perdão, amor, respeito, amizade, salvação e fé.
Há muito não vejo e nem sei notícias do Zé. Espero que esteja bem e quero encontrá-lo naquele lugar que é nossa esperança, naquele dia que almejamos, as bodas do Cordeiro e sua Igreja, onde Ele nos "enxugará dos olhos toda lágrima. E já não existirá mais morte, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram" (Ap 21: 4).