A fogueira e a memória-retalho.

É engraçado, as coisas se fazem de um jeito, o dia a dia, o passar, ele vem pedindo da gente um acordar sem fim do que nos faz humanos.

É bem fácil que o que carregamos aqui dentro se perca, seque, assopre. Que o fôlego de atravessar um dia após o outro perca a hora de chegar, porque resolveu ficar debaixo do mar, esperando.

Talvez seja isso. Talvez seja assim o São João, seja o evitar a destradução, evitar que o crepitar da fogueira, a fumaça, a pirotecnia, vire só o trabalho da química, da entropia.

Não pode ser assim.

A minha luta diária é a de manter viva a criança, de resgatar no lembramento eterno. E aí pode até ser injusto, malforme, mas é meu. É lugar-comum

Tudo era bem diferente, simples. Mainha recortava uns retalhos, colava no jeans já gasto que esperou o ano inteiro pra isso, pintava um bigodinho, um cavanhaque, e então se fazia o menino-homem. Daí um chapeuzinho de palha e uma camisa quadriculada, pra que fosse vivo o jogo de cena junino.

Eu nunca gostei de dançar na quadrilha. E agora não sei se eu não gostava mesmo, ou só tinha era vergonha. Chamar menina pra dançar? De jeito algum. Ficava olhando os vestidos, os passos, ouvindo a música. Um observador não participante, um entender um por um a minucia do ritual. Sempre achei mágico, teatral. O reunir pra recriar, rememorar. O poder disso eu já sabia desde novinho. E quase sempre era alguma coisa sobre alguém que fugiu de casório, ou de alguém querendo matar alguém, ou de um bando cangaceiro que assustava cabra valente. Sei lá. Se eu for problematizar isso aqui, é pensar que não acaba mais.

Julinha sempre gostou disso mais que eu, eu acho. Já foi rainha do milho e disso e daquilo. Ficava linda nos vestidos. Linda. Mainha ainda deve ter as fotos.

E aí as vezes painho chegava de passagem, falava que eu tava bonito, dava uns beijos, dinheiro pra comprar estalinho, bombinha, um espetinho com farofa, ou qualquer outra besteira que a gente quisesse, sei lá. Ele ia embora de moto e jaqueta e a gente corria até a vendinha da esquina, enchia as mãos de tudo que o vazio paterno podia comprar, e uma criança querer. Tudo era festa.

Comprávamos das mais variadas: Bujão, sete tiros, traque, chumbinho. E aí se fosse perigosa, pedia a algum adulto pra soltar pra gente. Mainha sempre falando que cuidado pra não se queimar, pra não suar, não sujar a roupa, se tava com fome, que olhe os carros, e se uma bomba dessa explode em alguém aí só Jesus...

E a noite se fazia assim. As crianças fazendo brilhar o olho, correr num assustamento a cada barulhão alto que dava. E então quando da caixa do estalinho só sobrava a palha, um por um já tinham virado estrela, faísca. Já tinham se perdido na passageirice, na esgotação. Quando a gente já tinha se terminado no milho, na canjica, na pamonha, tirado o figurino, colocado o pijama, repousado a máscara, e deitado num desatrapalho,

aí tudo parecia um pouco mais perto de como é hoje.

Uma fogueira acalmando,

o calor acabando,

uma memória-retalho.