GUAVIRAS E MARIMBONDOS - LEMBRANÇAS DA NOROESTE DO BRASIL
Procuro no Houaiss e não encontro a palavra guavira. Ele grafa guabiroba, gabiroba, ou, araçá-do-mato. É aquela confusão com a guariroba que a gente, no Mato Grosso do Sul, chama guerova.
Só que guavira ou gabiroba é fruta, guariroba ou guerova é palmito.
De qualquer forma, pra mim é um acinte do Houaiss não colocar no seu dicionário a palavra guavira. Sul-mato-grossenses amam a tal frutinha que dá em arbustos no meio do campo.
A frutinha é doce, saborosa como as uvas. Naqueles tempos, ocorria muito de moças engravidarem quando iam ao campo colher guaviras, por isso, pensava-se até mesmo que a frutinha fosse afrodisíaca ou, quem sabe, se na própria doçura já não viesse o bebê.
Havia o passeio, com latas ou sacolas, para catar as guaviras e, depois, sentar-se em alguma sombra e comê-las vagarosamente, cuspindo as cascas. Era impossível não apreciar as guaviras, tanto que os meninos que moravam às margens da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, sabendo disso, colhiam e enchiam saquinhos de papel com guaviras, para vendê-las aos passageiros do trem.
Noite sim, noite não, o trem passava e parava por três minutos. O guri estava lá, com uma cesta de vime cheia de saquinhos com guaviras. Passara a tarde catando-as no mato, quem sabe com o risco de ser picado por alguma cobra, mas valia a pena, dois mil réis estariam no bolso ao partir o trem.
- Ei, menino, quanto custa a guavira? Com esta pergunta, fez-se a negociação e, assim, a cesta subiu pela janela.
O trem parado, já apitando o maquinista, avisando a hora da partida. A Maria Fumaça começa a se pôr em movimento e vai levando atrás de si aqueles imensos vagões, lotados de gente. Logo após a locomotiva, os vagões de primeira classe, depois o restaurante e, no final, mais dois vagões de segunda classe.
Piui, piui, cantava a Maria Fumaça! O menino se desesperou.
- Minha cesta, dona, me dá a cesta! O trem acelerado, nada de cesta, cai apenas um quatrocentão, um quinto do que valia o total das frutas, sem contar a perda da cesta.
Foram-se as guaviras, foram-se os dois mil reis, ficou a mágoa, as lágrimas e a humilhação de ter sido enganado na estação de Ferreiros, na década de 30 do sul do Mato Grosso.
Passaram-se os dias, o rancor do engano moendo o coração. O menino não foi catar guaviras.
Olha lá, o trem parado na estação, outra vez por três minutos. Com certeza a mesma locomotiva, os mesmos vagões, os mesmos passageiros.
Ah, a mulher com a cesta deveria estar ali.
O menino trouxe a sua. Porém, a cestinha não era a mesma, nada de guaviras. Era uma cestinha cinza, muito bem trançada, feita não por mãos humanas, redondinha e doce.
Tão linda a caixa de marimbondos que o menino trazia num saquinho segurando a boca. Eram aqueles marimbodinhos pretinhos, terríveis, faziam com que as vítimas de seus ferrões declamassem em prosa e verso todos os palavrões que estivessem no Houaiss, no Aurélio e que nem estivesse neles.
Palavrões cheios de raiva, sonoros neologismos.
Três minutos.
- Piui, piui, cantou a Maria Fumaça, e o comboio se pôs em movimento. Pela última janela do último vagão da primeira classe, voa para o meio do trem de passageiros da gloriosa Estrada de Ferro Noroeste do Brasil a caixa de marimbondos, que se espatifa no interior do noturno.
O malvado marimbondeiro ainda pode ouvir a gritaria de mulheres, velhos e crianças. Homens nas janelas praguejando. E o trem avançava, distanciando-se da estação de Ferreiros.
Ele olhara por uma tarde inteira para o ninho dos insetos e lhe assaltava a lembrança da cesta de guaviras e dos dois mil réis. Cortara com cuidado, na calada da noite, o ramo onde pendia a caixinha cinza, cheia de marimbondos, decindindo: mel por mel, desta vez iam-se os marimbondos para adoçarem a boca da mulher que levou a cesta.
No dia seguinte, na Casa Prado, de comércio varejista, o Chefe da Estação comentava o telegrama recebido da estação mais próxima, exigindo que se investigasse quem jogara uma caixa de marimbondos no interior do vagão de passageiros.
- Não há de ver, seu Juvêncio, que ontem jogaram uma caixa de marimbondos dentro da primeira classe, bem aqui em Ferreiros.
Espantado com a malvadeza ou sorrindo com a traquinagem, o velho Jota, talvez, perguntava: quem foi o culpado?
O menino marimbondeiro, sentado na porta do estabelecimento comercial, chupava algumas doces guaviras, ouvindo as notícias dadas pelo Chefe da Estação.
"A vingança, caro leitor, é um prato que se come frio".