Providência Divina
O sol queimava impiedosamente a pele da pessoa mais precavida naquela manhã de maio. Um protetor solar La Roche-Posay Anthelios XL não era nada para os 36ºC com sensação térmica de 40. Minhas bochechas estavam rosadas como um algodão doce. Respiração ofegante —sobrepeso —, passos lentos, cabeça a mil. Vinha pela Avenida Getúlio Vargas, tinha acabado de sair do hospital regional. Infelizmente, sem boas notícias. Meu pai não tinha melhorado nada, fazia dois dias que não tínhamos uma boa nova do médico. A dor corroía o meu peito. Aquele calor poderia me transformar em um pedaço de bacon frito; nada mais me afetava.
Estava entorpecido por uma mistura de aflição e angústia. As pessoas diziam que eu precisava ser forte para alentar os outros, afinal, eu era o filho mais velho. A verdade é que me sentia como um saco de batatas, meu irmão caçula que era um herói. Ele salvou meu pai e tem sido o mais otimista entre nós. Durante aquela caminhada em direção à casa da minha avó— um lugarzinho até bacana, mas abafado, que tem me rendido péssimas noites de sono — tentei não pensar nos problemas de saúde do meu pai. A solução? Foquei nos problemas de ordem financeira. Fiquei imaginando como eu poderia ajudar com as contas da casa.
Podem pensar que eu devo ter algum parafuso a menos, mas a verdade é que não consigo confabular com a positividade tóxica. Além disso, problemas precisam ser resolvidos. E tinham problemas, viu! Se não pensasse na grana magra, teria que focar na minha tese doutoral, que estava parada há 20 dias. Afinal, quem consegue usar a cabeça após receber a notícia de que seu pai tem 1% de chances de viver? É.… o AVC hemorrágico Tronco Cerebral não é brincadeira, na verdade, ele é uma mistura das dez pragas do Egito.
Sou aluno de um curso de pós-graduação, alguns nos chamam de pesquisadores, mas eu me considero só professor mesmo. Meu trabalho é escrever. Tenho que desenvolver a minha pesquisa. A parte boa é que pode ser em qualquer lugar, o que me permitiu ficar perto da minha família nesse momento delicado. Gosto do que faço, mas a bolsa que recebo não condiz com os esforços exigidos por essa profissão. Para piorar, infelizmente, não posso acumular essa atribuição com outro emprego. Ingrato e ganancioso? Não. Nunquinha. São quase 10 anos de estudos, só acho que já é hora de a vitória ter sabor de mel, parafraseando Damares.
Enfim, durante esse trajeto fiquei imaginando o que eu poderia fazer. Sou um homem limitado, mas até que sei carpir um lote, cozinhar uma cumbuca de arroz, embora não seja nenhum mestre nesse assunto. Eu sou bom com 3 coisas: escrever, estudar e ensinar. Às vezes faço bicos de mentorias, revisão textual, pequenas traduções...coisas relacionadas à minha área de formação. Mas, depois que uma ‘amiga’ cresceu os olhos na quantidade de pessoas que estavam me procurando, minha clientela desapareceu. Eu sou veaco e supersticioso. Certeza que ela fez alguma pemba.
Pensando para lá e para cá, nada surgia. O fato é que as noites insones estavam me afetando. Quase dei uma rasteira no locutor da porta de uma loja que estava fazendo passinhos de tik tok e anunciando uma promoção de roupas cafonérrimas. Não que eu seja elegante, na verdade, eu estava só o bagaço. Consegui destruir a costura da minha bermuda na máquina de lavar roupa da minha mãe. Só percebi o estrago quando guardei o celular no bolso e ele se espatifou no chão. Para complicar um pouquinho mais, eu esqueci meu chinelo na cidade onde moro. Então, tive que comprar outro — em suaves parcelas divididas no cartão Nubank. Notei que na universidade todo mundo estava calçando um rider, então comprei um daqueles. Que arrependimento! Meus dedos ficaram cheios de bolhas, não sei andar com isso não. Sem falar que me deu um chulé horripilante. Disseram para passar bicarbonato de sódio. Deve ser chinelo para gente que não anda a pé.
Ao chegar em casa, fui diretamente para o banheiro. Meu pai havia contraído uma bactéria contagiosa no hospital e, por conta disso, os médicos recomendaram banhos imediatos. Liguei o chuveiro e observei uma quantidade absurda de fios de cabelo caindo. Antes disso, eu estava fazendo um tratamento para queda capilar com Minoxidil e algumas vitaminas da moda. Mas, parece que sofri o temido efeito shedding em uma péssima hora. Talvez seja o estresse ou o calor cacerense que desencadearam esse efeito colateral, que ocorre em cerca de 35% das pessoas que seguem o protocolo desses medicamentos. São coisas que sabemos que podem acontecer, mas nunca desejamos, assim como o AVC.
Esperei cair tudo o que tinha que cair e apreciei a água escorrendo sobre o meu rosto rosado. Lá fora, um carro passava com um som bem alto convidando as pessoas para participarem de um culto. Confesso que não sou um exemplo de religiosidade, e não queria, do nada, entrar em contato com o divino apenas para pedir algo. Nem com os terráqueos faço isso. Tenho pavor!!! E eu sou vítima desse tipo de atitudes, tá cheio de gente que só entra em contato comigo para me pedir algo que sei fazer, como uma leitura crítica, envio de materiais e anotações, ajudinha pra lá e pra cá. Afs!!!! Inclusive, tenho duas amigas que durante esses 20 dias não me mandaram uma mensagem de conforto. Elas são obrigadas? Não. Mas a última mensagem de uma delas foi para eu comprar e dividir o valor de um curso com ela; e a outra queria uma consultoria sobre alguns documentos.
Passei o óleo de peroba na cara e falei sem pretensão alguma: — Deus, me dá uma luz se você estiver ouvindo. Só disse isso, mas tive a sensação de que não estava falando para as plantas da janela. Fiquei pensando nisso o resto do dia. Dormi, pensando, mas, antes, repeti o pedido durante a madrugada. Três dias se passaram após esse episódio, quando, de forma inesperada, veio a resposta. Uma senhora literalmente desesperada me enviou uma mensagem no WhatsApp. Era um número desconhecido e eu quase a ignorei pensando que seria alguma consultora dessas universidades pagas que ficam oferecendo uma mega promoção “ compre 3 especializações e pague 1”, ou algum colega professor desesperado ansiando um favorzinho... uma correçãozinha na faixa... uma leiturinha amiga... uma palestrinha na formação continuada de sua escola...
Relutei mas abri a mensagem. No entanto, quando vi do que se tratava, foi como se uma janela se abrisse diante de mim, trazendo consigo uma brisa suave de esperança. A pobre senhora entrou em contato para solicitar um serviço de revisão e mentoria. Ela tinha defendido sua dissertação há 4 dias, e a banca avaliadora havia retirado sua paz. Eu dei o meu preço, e ela nem hesitou. Concordou com tudo e pediu para eu mandar a ver. Coincidentemente, o prazo da entrega final do trabalho dela era em até 20 dias, os mesmos 20 dias de tormento quais vivenciei.
Honestamente, encarei essa oportunidade como uma verdadeira providência divina. Um trabalho robusto, sobre um tema que eu gosto de discutir surgir nas minhas mãos repentinamente é, com certeza, a maior resposta à minha prece lacônica e desesperada. A vitória não teve sabor de mel, mas sim, de suco de uva — minha avó tinha acabado de fazer para o jantar. Meu coração transbordou de tanta gratidão.
As pessoas sempre me disseram que eu estava longe de Deus porque não gostava de ir à igreja, mas, na verdade, percebi que Ele sempre esteve por perto.