O DEFUNTO INESPERADO
O defunto inesperado
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza
O LADRÃO RESOLVEU assaltar a funerária do bairro. Estivera sondando a loja de souvenirs cadavéricos quase uma semana, e, na sua busca, descobriu que, por dia, em média, de dez a doze corpos depois de preparados por funcionários especializados, partiam despachados para o cemitério com todas as pompas e regalias a que tinham direito, e, em paralelo, seus familiares desembolsavam uma boa soma em dinheiro em nome da memória e da última vontade do “de cujus”.
Depois de pesar prós e contras, de filmar a movimentação e o entra e sai intermitente dos carros que traziam os restos mortais dos hospitais das redondezas e logicamente das pessoas aflitas em busca da eterna morada para seus entes queridos, decidiu que a sua hora de agir havia dado sinal verde. Optou pelo melhor horário, ou aquele após às dezenove horas, quando o entra e sai se fazia demasiadamente ralo e nenhum vivente estaria por perto espreitando seus passos a ponto de atrapalhar seus planos maldosos na derradeira hora de dar o bote certeiro nas finanças da empresa.
Antes de se pôr em movimento, acendeu um cigarro – deu duas longas tragadas e voltou a perscrutar para os lados, intencionando se certificar de que não cairia numa possível emboscada da qual não conseguisse sair ileso e vitorioso. A barra se fazia calma e tranquila. Limpa e cristalina. Aproveitou também para observar se o revolver, sobre a camisa, aguardava às suas ordens em ponto de bala, se caso necessário. Tudo nos conformes. Atravessou a avenida sem pressa de chegar ao objetivo almejado. Naquele horário, o vai e vem diminuía consideravelmente. Do lado da calçada onde se posicionara, apenas um barzinho vazio com dois bêbados diante de copos com cervejas pela metade.
Em contíguo à loja fúnebre, uma gráfica, uma vitrine de roupas infantis, uma banca de jornais e um salão de beleza. Todos com suas movimentações encerradas. Nos demais prédios ao longo da alameda, predominavam apartamentos e quitinetes com grades nas portas e janelas. De certa forma, em face de estar num bairro praticamente dormitório, essa condição de calmaria e pouca gente transitando, ajudaria naquilo que ele pretendia pôr em prática. Assim pensando, cruzou de uma margem à outra. Em frontal, bateu com os nós dos dedos na corrediça envidraçada.
Do lado de dentro, a recepcionista sorriu para ele de maneira elegante, fazendo sinal indicando que não estava mais atendendo. Contudo, o ladrão esperto e astuto, apontou para uma tabuleta onde se lia, em letras garrafais: “PLANTÃO 24 HORAS”. Contra a vontade, a jovem resolveu abrir:
— Senhor, já fechamos. Esqueci de tirar a plaquinha de aviso.
— Eu sei... pretendo não lhe tomar muito tempo. Juro. Palavra de escoteiro.
— Alguma coisa urgente?
— Minha tia faleceu. Queria...
—... Meus pêsames. Espere um momento.
— Por favor, não demore. Estou deveras aflito.
A beldade voltou a travar o acesso deixando o guabiru à espera. Passou a mão no telefone e discou para alguém. Desligou o aparelho dois minutos cravados e regressou com um sentimento de benevolência e simpatia que por pouco não fez o malandro dar meia volta e abortar o pretendido:
— Desculpe, senhor. Pode entrar. Meu patrão disse que não há mal nenhum em lhe atender.
— Obrigado pela sua atenção. Desculpe o que vou dizer. A senhorita, vista de longe, me fez lembrar a Mariana Kupfer.
— Quem, senhor?
— Perdão. Seu rosto simpático me trouxa à memória a tal apresentadora e atriz. Agora que estou a seu lado, percebo que está mais para a Pitty.
— Como?
— Pitty, a roqueira baiana.
Risos e gracejos espontâneos:
— Perdão. Não sou roqueira nem baiana. E nunca ouvi falar nessa Mariana. Vamos nos ater ao que importa: em que posso ajudá-lo? O senhor disse que a senhora sua tia...
O larápio a interrompeu pedindo silêncio ao tempo em que levava o indicador aos lábios:
— Me diga, a senhorita está sozinha?
Fez a pergunta propositadamente, embora soubesse que naquele horário apenas ela e mais uma outra garota estavam ali:
— Uma colega que se encontra no banheiro. E então? Qual seu problema. Quer adquirir uma de nossas urnas?
— Não tenho problemas nem quero saber de porcaria de urna. A senhorita é que tem um assunto muito sério a tratar comigo.
— Não entendi, senhor...
Sem perder um minuto mais, o rapaz sacou o “berro” oculto sobre a vestimenta:
— Vamos, abra o caixa e me passe a grana.
— Senhor...
— A senhorita está sendo assaltada. Estou com mais dois colegas lá fora me dando cobertura – mentiu para dar ênfase a sua sanha diabólica. – Vamos, sua imbecil: o dinheiro...
Atônita e boquiaberta, a atendente faz menção de gritar:
— Nem pense em botar a boca no trombone. De roldão, não faça gracinhas que venham a me desagradar. Só quero o “cacau” que você tem aí no caixa. Prometo não voltar nunca mais, nem para escolher uma dessas coroas de flores ridículas.
Pintou no salão, saindo do banheiro, a outra funcionária. Ao topar com a sua parceira, uma pistola apontada para a cabeça, simplesmente desmaiou:
— Melhor assim. Evita que precise apertar o gatilho duas vezes.
Inopinadamente o desgraçado desferiu um tapa violento no traseiro da infeliz:
— Vamos, safada, a bufunfa. Rápido, ligeiro, sem gracinha. Nada de querer acionar esse botão vermelho aí debaixo da bancada.
— Mas senhor... eu...
— Calada. Passe o que pedi e fim de papo.
— Me deixa, ao menos socorrer a...
—... Esquece. Manda aqui para o papai a porcaria da grana. Estou começando a sentir coceira nos dedos.
— Calma, senhor. Vou lhe dar todos os valores do dia.
— Rápido e ligeiro, como quem rouba e tem pressa de ganhar o mundo.
— Por favor, não atire. Tenho a minha mãe idosa para sustentar.
— Cala essa matraca. Também tenho mãe. A grana...
Nesse momento o velho Virgulino, vigia da noite que tirava uma soneca num dos ataúdes, acordou. Sempre chegava cedo à firma, entrava pelos fundos do prédio por uma ruela segundaria e enquanto não dava a sua hora de bater o cartão, aproveitava para um cochilo no escurinho de uma das peças mortuárias postas em exposição.
Por conta desse evento, ao se deparar, tête-à tête com a tampa de um caixão à sua retaguarda sendo levantada, o ladrão se arrepiou dos pés a cabeça. Literalmente tremeu na base. No que o vigia se fez presente, de vez, e meteu a fuça para fora com o propósito de acostumar os olhos à claridade da luz, a coisa degringolou. O gatuno teve uma espécie de piripaque. Na verdade, um baita susto o desequilibrou. Por aquele inopinado, evidentemente, ele não esperava. De súbito, soltou a moça, largou o trinta e oito, deixou cair o dinheiro. Atarantado saiu correndo em desabalada carreira, como se estivesse com o rabo à seringa.
Nessa debandada, sequer divisou o vidro imenso de ingresso à recepção por onde passara. Tresloucado, atirou-se de cabeça em direção à saída. Se esquecera desse pequeno detalhe. Com o baque, se rebentou todo, caindo grogue e totalmente tonto, além de bastante ensanguentado. A refém, nesse interregno, pulou para dentro do balcão e acionou o alarme. Em minutos, o frontispício do espaço de comercialização de coisas para sepultamentos ficou tomado por carros da policia com soldados transitando de um lado e outro. Tremendo pior que vara verde em meio à ventania, acabou preso e algemado por conta do suposto “defunto”.
Na verdade, o “defunto, entre aspas”, ou melhor, o vigia Virgulino apenas descansava um pouco dentro de um dos féretros enquanto esperava à hora de pegar no serviço onde passava a noite inteira como segurança. Visivelmente assustado e transtornado, o desditoso assaltante, pronunciando palavras ininteligíveis careceu de ser amparado por três militares até uma ambulância que igualmente fora requisitada. A criatura chorava, berrava, se esperneava, e, pior, se debatia apontando o homem que saíra do esquife como se tivesse visto nele uma assombração vinda das profundezas do além.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Cidade do Sol Nascente. Ou, do outro lado do mundo.