A gripe, a estória, e a mulher bonita.

*O meu eu que já escreveu isso aqui veio pra dizer que o que está prestes de ler tá gigante, errante. Tentei impor lógica, forma, mas não importa. Vai assim. Eu avisei, haha.

**Ah! Talvez esteja mais conto que crônica, mas tive que escolher um dos dois pra publicar. É isso. Boa leitura

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Fiquei a viagem inteira atônito, ansioso, vendo a janela do carro recortar longos pastos, verdes, criações de bichos, ou só terra e poeira. Minha cabeça oscilava entre calmamento e agitação.

No carro, a história dizia que o lugar que íamos era cheio de passagens secretas, longos braços cavados pelas intempéries ou sei lá, por seres de outro tempo, um tempo mais antigo.

Falavam também que era casa de uma princesa, que por alguma desventura ficou presa ali, (sempre as princesas, tadinhas), diziam também que na trilha que fariam dali a pouco, algum descuidado poderia até entrar num descaminho, e achar um dos corredores onde estaria a tal princesa. Ou pior, se armadilhar e ficar preso pra sempre numa das centenas de arapucas que alguém espalhou pelo lugar.

Tusso. Estou de volta pro tempo presente.

Dores locais: nas articulações, tosse:calafrios, desidratação, fadiga, febre, mal-estar, perda de apetite, rubor, dor no corpo ou suor, dor de cabeça, falta de ar, fraqueza muscular, inchaço dos gânglios, náusea ou pressão no peito.

Gripe. Estou assim. A coisa vai ser regada a descontenteza, escuro do meu quarto, dias com fatias enormes de tempo e a sopinha que eu odeio.

Sério, em lugar nenhum deveria se cogitar sopa como qualquer coisa parecida com janta. Não!

Não vou ser negacionista aqui, e dizer que não é nutritiva. É. Vai te manter vivo, certeza. Como uma porção de outras comidinhas deliciosas.

Mas é,

doente não escolhe.

Quando tô assim a coisa preferida é agir como se eu fosse uma alminha. Vago do quarto pra cozinha, da cozinha pro banheiro, do banheiro pro quarto. Um ensaio pré morte.

Outra coisa que eu faço é meditar profundamente, vasculhar a minha cabeça bem devagar atrás de memórias, atrás de mim. Isso é uma coisa, o tempo é tão implacável em não sobrar, que a gente esquece da gente mesmo. Tô falando besteira? Sério, vê se não é assim.

E aí eu fecho os olhos e estou de novo numa caverna, numa gruta.

Eu e minha prima choramos, os olhos e o rosto dela estão vermelhos, os meus também. Choro como se fosse a última e única, coisa que eu sou capaz de fazer. Estamos na entrada, o barulho do choro entra pra dentro num pleonasmo agressivo. Pra dentro da gente, pra dentro da caverna, e a cada soluço engolido, o mundo é então menos mundo.

Escoa, desaparece

O lugar é "Casa de pedra" uma formação rochosa em Martins, interior do RN.

Minutos atrás, tinha visto minha mãe entrar ali, e ser absorvida pelo buraco. Me lembrou na época, quando Luke Skywalker estava sendo treinado por yoda, e tem uma visão de Vader naquele lugar meio onírico, envolto numa fumaça que abraçava e neblinava tudo. Me deu medo.

Foram assim, mãe e uns dez outros familiares. Me sentaram numa pedra bem grande e mãe disse, "Mainha já vem". A pedra me machucava se eu movesse, machucava se ficasse parado, mas o medo maior era do escuro que toma e não devolve.

Achei mesmo que a caverna tinha tomado mainha.

E aí é engraçado, tem um limite para o quanto se pode chorar. Primeiro começa doendo forte, fazendo barulho, molhando a face, ardendo o olho numa coisa que está entre você por a si mesmo pra fora, exorcizar e curar, e na verdade doer ainda mais. Porque, ninguém diz isso:

mas só sente quem tá vivo. Sentir demanda energia muita. Pensar sobre o desejo, atravessar as coisas, ou até estar que nem eu agora, no sorver do ar que faz barulho e faz tosse.

Mas não reclamo, não reclamo, faz parte. É da vida. Só me resta escrever.

O lugar, a caverna, a casa de pedra, se via cheia de rabiscos. "Fulaninho esteve aqui". Nomes, datas, declarações, piadas, frases. Coisas que os turistas deixam e vão. E então, meu olhar passeia por tudo aquilo, e chega o momento em que, mesmo que fique a dor, míngua o barulho, e se some o choro, num sopro final, uma vela que se apaga.

Abro os olhos. Estou no ônibus, dois de junho, 18:48, alguma dos doces bárbaros toca no fone. Minha cabeça dói, mas nada impede que se misture a música um monte de outras coisas, situações, diálogos, uma narração interminável que só se cala agorinha na meditação, no escrever.

"Diegese é então o ato de narrar, de contar uma história."

Quando você xinga pra sua amiga com um áudio de três minutos no zap, o babaca do seu ex...

diegese!

Quando detalha com minúcia o jeito como jogou as roupas dele pela janela, e cruelmente partiu em dois "polly", o ursinho de pelúcia que ele ganhou no tiro ao alvo, no parquinho só pra te presentear, esvaziou os miolos-espumas do Polly, e o reduziu ao que flutua.

E aí saiu gritando. "Safado, pilantra, medíocre." Pra quem tivesse ouvidos que ouvisse da traição.

Diegese!

Ou então quando estou na semana passada e a Simone do centro de psicologia aplicada me pede pra narrar uma situação de pico emocional, de estresse, e ao fim pergunta com um sorriso engraçado, calmo, pacífico:

'De 0 a 10, como aquilo te afetou? A coisa com sua mãe, os atritos da sua família..."

e aí eu digo que não sei, que acho que dez, que como que eu vou medir essas coisas? Como que se faz isso" Diegese.

Já o extra diegético está além, é a trilha que toca e o personagem não escuta, é o que acontece no indecifrável que e não se governa, é o sonho, sou eu quando idealizo, sou eu com medo da espera.

E pra mim, não sei, traçar essa linha é causa perdida. Tudo é tão homogêneo quanto o mexer da sopa que vó fez pra matar minha gripe. Quando é real, é uma parede aterradora, um chão que desce. E por outro lado, quando é fantasia, é de novo o roubo da consciência.

Sou eu na caverna, chorando.

Sou eu...

Passos, o lugar parecia pronto para falar, parecia ter acordado. A nossa estada ali deve ter demorado uma hora, talvez mais, talvez menos, mas então eu vejo, eu escuto.

"Deixe de ser besta, Biel. Mainha disse que voltava."

E aí me abraçou, e aí eu me senti bobo, mas aliviado. Contou como era lá dentro, ouvi tudo com atenção, que tinham que ir se curvando, depois agachados por uma passagemzinha escura, e então por fim, quase que rastejando.

Até chegarem num lugar onde brotava uma água bem bonita, e se desenhava uma escultura de uma mulher,

uma mulher linda.