Um homem chamado Miguel
Um homem chamado Miguel bate-me à porta, agora, pela manhã.
É sábado, é manhã, faz frio, e os pinguins que adornam a geladeira me pedem que mantenha a janela fechada.
Protesto: "Mas há alguém chamando." (Até então desconhecia que Miguel chamava-se Miguel. Se soubesse, diria: 'Mas, senhores pinguins, Miguel está chamando.')
Contrariando a opinião dos pinguins, abro a janela, e constato que, apesar do frio, lá fora ainda há sobreviventes. Há, além de Miguel, claro, há a patrulha policial em sua ronda habitual; há senhora Adamastora colhendo, na carroça motorizada, o litro de leite para alimentar os seus mil e um gatos; há três vira-latas e dois homens não identificados soltos pelas calçadas; e há este frio avassalador, a condenar a todos.
– Bom dia...
Agradeço o cumprimento, apesar do frio, e Miguel prossegue.
– Me chamo Miguel.... Você é....
À essa altura, interrompo Miguel, para lhe dizer que depende. Desta vez os pinguins é que protestam. Querem que eu seja objetivo, que pergunte logo a Miguel o que pretende àquela hora da manhã de um sábado friorento e avassalador, à porta de um pagador de impostos e sujeito sensível ao frio, e depois, sumariamente, que feche a janela, se possível durante todo o restante do mês de junho.
Acato o aparte.
– Sim. Sou, ou ao menos tento ser. Mas, Miguel, os pinguins que alegram minha geladeira querem saber o motivo de sua visita.
Miguel, após arregalar os olhos grandemente, talvez em sinal de surpresa pelo fato de eu ter em casa pinguins falantes, desenvolve o discurso mais ou menos nestes termos:
– Venho da parte de Fulana...
Interrompo mais uma vez Miguel, sob protestos dos pinguins, para lhe perguntar se está com frio e se deseja entrar. Miguel, muito educado, nega o frio evidente e o convite socialmente aprovado, retira de uma mochila estilosa, de couro ocidental, dois livros fininhos e me apresenta:
– Fulana me pediu para lhe entregar pessoalmente.
Então era isso. Miguel, muito educado, em uma manhã de sábado, de frio polar, a pedido de Fulana, mete-se em tamanha e perigosa missão.
Ah, as Fulanas, as Fulanas, as Fulanas... Ah, se os pinguins que alegram geladeiras soubessem, nunca se apaixonariam, tampouco emprestariam livro algum. Nem mesmo às Fulanas, muito menos às Fulanas.