Prato feito
Nós morávamos num apartamento perto da Avenida Paulista. Lugar minúsculo, mas suficiente para abrigar três pessoas. Nossa convivência era boa, fora as comidas esquecidas na geladeira por semanas até ser impossível guardar qualquer coisa lá dentro. Cada um lavava suas próprias roupas. Fazer faxina exigia maiores esforços.
Um era bancário, saía cedo e só voltava tarde da noite. Pouco nos encontrávamos. Depois do expediente, ele se reunia com os amigos, participava de reuniões políticas. Frequentava o sindicato e, às vezes, voltava carregado de panfletos. Costumava nos dar alguns: “Abaixo a Ditadura”, reivindicações por melhores salários, críticas ao custo de vida, pedidos de esclarecimento sobre o paradeiro de presos políticos.
Eu estudava de manhã. Quando não perdia a hora, era o primeiro a sair de casa, mas voltava no horário do almoço. O outro acordava tarde, era ator, retornava de madrugada. Nós dois costumávamos descer a Brigadeiro Luís Antônio e íamos até a Avenida São João em busca dos restaurantes baratos onde serviam prato feito, o famoso PF. Fazíamos o caminho a pé para economizar o dinheiro da passagem de ônibus.
Ele, mais velho do que eu, chamava minha atenção para as mocinhas que passavam na rua. Achava que devia me ensinar técnicas de paquera, o melhor horário para abordá-las, o que dizer a elas, como convidá-las para tomar um café. Eu escutava e ficava por isso mesmo. O machismo estava escondido em algum canto remoto do cérebro. As “aulas” nunca iam adiante. Além disso, ambos tínhamos namoradas. O assunto principal era outro.
O centro de São Paulo me encantava, assustava e ensinava. Eu ficava maluco com tamanha diversidade, com tanta gente circulando de um lado pro outro. Às vezes, eu achava que tinha me tornado invisível, podia fazer o que quisesse e ninguém ia me ver ou se incomodaria comigo. Em outros momentos, eu me identificava com os diversos tipos que andavam por ali: ora era um jovem cabeludo de calça jeans ou um operário pensativo, quase nunca um engravatado. Eu tinha dó desses: “Que vida besta, meu deus!”. Ficar o dia inteiro separando papéis, sentado atrás de um balcão, não combinava com o que eu achava que valia a pena fazer durante o tempo vivido aqui neste planeta.
O PF era horrível, comida gordurosa, pouca higiene, mas quem ligava pra isso? Nós não estávamos nem aí, o governo também não e muito menos os donos dos restaurantes. Ainda bem que andávamos bastante e gastávamos as calorias que havíamos ingerido. As preocupações eram outras.
Na verdade, queríamos um país diferente, um mundo diferente, outros tempos, outras paisagens, outros afetos. Não aceitávamos a censura, a corrupção deslavada, a presença ostensiva da polícia, que estava mais interessada nos “subversivos” e em oprimir os trabalhadores. Queríamos ler os livros que julgávamos importantes, assistir às peças de teatro de que gostávamos e falar o que tínhamos vontade, sem medo. O prato feito matava nossa fome, a caminhada alimentava nossos sonhos.