O JUDICIÁRIO E A MULHER DO DEVEDOR
Meados da década de 1970. O Judiciário em Campo Grande, no então Estado do Mato Grosso, resumia-se a quatro Varas Cíveis e duas Varas Criminais. Os advogados eram todos conhecidos. Tínhamos menos de dez ofícias de justiça. A área total do Fórum era pouco menor do que um dos andares do nosso Fórum Heitor Medeiros.
O Dr. Heitor Medeiros era um advogado consagrado, civilista respeitado, mas já o conheci no final da vida, quando andava com dificuldades usando uma bengala.Segundo os que o conheceram melhor, era um homem educado e culto. Foi minha chefe a filha dele, Dra. Cida, de quem trago também boas lembranças. De qualquer modo era temido por seus colegas, dada sua competência.
Temia-o eu também, que fui "xingado" pelo eminente causídico por uma palavra que me era desconhecida. Era eu um jovem Promotor, participando de uma das minhas primeiras audiências e já enfrentando um monumento do Direito. Disse-me ele:
- Neófito!
Terminada a audiência corri para o gabinete, buscando no Aurélio o significado daquele desaforo que poderia ser qualquer coisa. Queria saber o tamanho da ofensa.
"Pagão recém-convertido ao cristianismo; cristão-novo". Então, Dr. Heitor só me chamara mesmo de novato, um camaradinha sem experiência. Era verdade e não doeu.
Os juízes, que me recorde, os meus professores José Nunes da Cunha e Athayde Neri de Freitas; os futuros Desembargadores Rui Garcia Dias e Milton Malulei, e ainda, o Dr. Amilcar Silva, que instruiu e julgou o processo-crime dos sequestradores do Ludinho, caso comentado mundialmente.
É evidente que cometerei aqui algumas injustiças, esquecendo-me de muitos nomes, mas os advogados a quem eu admirava, enquanto acadêmico de Direito, eu os via nos corredores do Fórum e até conversava com eles. Meus professsores Plínio Barbosa Martins e Pietro Falco, os criminalistas Nelson Trad e Giordano Neto, o defensor público David Rosa Barbosa, meu professor de Direito Processual Civil e, posteriormente, meu colega no Ministério Público Estadual, ele Procurador de Justiça e eu Promotor na cidade de Coxim.
David Rosa Barbosa atuou na defesa no Júri do Crime do Correio. Vi naquele julgamento uma defesa monumental. Se dependesse daquele dia, o meu professor foi o maior tribuno do Júri que conheci.
Inesquecível também, na data comemorativa do Dia do Advogado, o julgamento simulado de Tiradentes, o herói da nossa República, onde atuaram como acusador e defensor os advogados Nelson Trad e Giordano Neto.
Nesse ambiente estavam oficiais de Justiça como seu Milton, Luiz Gonzaga e o já idoso Guinozes, de saudosa memória. As cartorárias dona Aidê, Eutália e minha amiga Arlete Borges Barros.
Deus me deu a graça de ser formado pelo Dr. Adeir Ávila de Andrade, com ele aprendi o que é ser um advogado. Exemplo de honestidade e diligência, meu mestre faleceu prematuramente aos 46 anos de idade.
No escritório tramitavam causas cíveis. À época, pouco se ouvia falar em causas trabalhistas. Tínhamos também uma administração de imóveis, com cerca de cento e cinquenta casas e salões de aluguel, o que atraia muita gente, trazendo novos clientes.
Tramitava uma ação de cobrança de alugueis patrocinada pelo nosso escritório. Apesar de ter endereço certo, o requerido não se deixava citar. Todos os dias estava eu, o jovem estagiário, cobrando do Oficial de Justiça o cumprimento do mandado.
Ali, na pequena sala dos oficiais de justiça do Fórum da 26, seu Guinozes, vendo a minha agonia, afirmou categoricamente:
- Estivesse comigo esse mandado e já estava cumprido.
Luiz Gonzaga entregou-lhe o mandado imediatamente.
- Então cumpre você. Disse ele ao Guinozes.
Marcamos a diligência para determinada manhã e, no dia aprazado, encontramo-nos, eu e o experitente Oficial de Justiça, em frente ao prédio onde residia o devedor.
Interfonamos e subimos. Ao chegarmos ao hall de entrada, apertamos a campainha e nos atendeu a doméstica que ali trabalhava, informando-nos que o devedor não estava, mas que sua esposa nos atenderia.
Eu me achava ali, convicto de que a coisa agora era séria. O devedor seria citado sem demora.
Ouvimos alguns passos e a porta se abriu. Inexplicavelmente, uma deusa de olhos azuis nos apareceu. Linda, pele branca sulista, cabelos castanhos, vestida em um robe de chambre, acetinado em azul claro.
Com a voz meiga, aquela Afrodite brasileira me pôs estupefato. Dizia-nos ela que o seu virtuoso e devedor marido não se encontrava, mas poderia ser achado, talvez, na semana seguinte.
Então, vi tudo indo água abaixo. Seu Guinozes, um pouco constrangido, limitou-se a dizer que voltaríamos em data próxima.
Descendo pelo elevador, fiz o comentário cruel:
- Até tu, seu Guinozes! Fraquejastes na hora mais importante.
Rimos e ele prometeu que o homem seria citado.
Na semana seguinte o mandado estava juntado aos autos do processo. O devedor citado. A missão cumprida.
O Poder Judiciário, através do seu competente serventuário, nosso querido Guinozes, havia citado o contumaz devedor, mesmo em face à beleza estonteante da deusa.
Têmis venceu Afrodite.