Nada-consta
Antenor Dias – detestava que o chamassem de doutor – era uma espécie de cronista urbano, da melhor estirpe dos que não deixam nada escrito, mas, com memória, muito bom humor e verbo afiado ia passando adiante os acontecidos na cidade.
O homem era mesmo um pródigo narrador, desses que fecham o testamento sem deixar direitos autorais de nada... Era a materialização do domínio público imediato. Contassem, repetissem o que ele dissera, e o doutor era a mais pura satisfação.
Cada semana era um caso novo divulgado com a verve do homem, que era médico, de muitas consultas e poucos recursos, pois tinha certa vergonha de receitar e receber... Comunista à sua maneira, o clínico tinha casos e casos do tempo da ditadura e dos esquerdistas militantes de uma época, que, felizmente, não o molestou...
Corria a década de 90, do século passado... E tinha saído a lei que indenizava – com toda justiça – aqueles que sofreram padecimentos no período da ditadura. Carlinhos comunista, que, segundo o doutor, tinha levado uns tabefes (o médico contava e ria-se) não estava informado, mas Antenor encarregou-se de lhe passar a comunicação alvissareira, sem mais detalhes, que, por certo, viriam a ser noticiados nos dias seguintes.
Mas o Carlinhos – que não tomava Coca Cola, pra combater o capitalismo – tinha pressa, e o que se relata a seguir foi contado pra um e pra outro pelo doutor e virou uma piada, dessas piadas leves que vão alegrando a vida e tornando o caminhar mais ameno.
Carlinhos comunista correu para as providências no quartel onde fora interrogado. Na portaria, havia só um recruta.
– Estou aqui para as providências para a minha indenização por ter sido vítima da ditadura.
O soldadinho não entendeu bem e esboçou um olhar interrogativo.
Carlinhos comunista continuou:
– Eu fui molestado pela ditadura, entende?
Carlinhos talvez não devesse ter dito ‘molestado’.
– Como?
– Sim, você sabe, este país viveu uma ditatura. Não sabe? E eu quero os registros que se encontram neste quartel.
– Registro da ditadura?
– Registros de que eu fui interrogado, molestado. – Carlinhos não mencionou tortura, porque, para sua sorte (ou azar?...) tinha levado mesmo os ditos tabefes e posto em liberdade.
– Ah, sim... Estou entendendo...
– Que maravilha!!! Vai olhar os arquivos?
– O senhor quer mesmo é um nada-consta?
Carlinhos, muito contrariado, replicou:
– Não! Não! Eu quero é um tudo-consta.
Sabendo do acontecido, o doutor Antenor saiu a divulgar a história de que no tudo-consta do Carlinhos comunista nada constava... E ria-se e partia para as consultas...