Faminto Belo
Talvez você não saiba mas durante o ano, durante lá algumas frações que eu nem sei exatas, e sabe lá como irei dizer, o fato é que experimento em tais instantes alguns assomos, e quando não me pego cochilante me esbaldo em divertidas fortunas de coisas miúdas.
Vai daí que, não é difícil compactar-me nos diversos jeitos. E cada um deles concomitantemente me parece tão repleto em seus objetivos que eu apenas me sinto forte. Então me sinto unido. Expandido. No entanto veja você a gente nunca sabe quando a literatura das palavras fáceis virá nos confrontar. São tantas notas quase nada atordoantes que só vejo nessa estrada um princípio sobretudo gestual. Uma folia de gestos. Na verdade eu quero soar agradável. Como um gesto tolo e por pouco imperceptível. Agradável. Como estrelas muito brilhantes numa noite nítida de verão.
A pontuação resultante das letras combinadas não é eternamente som? Vai daí que, duas ou três vezes por ano, sem a menor e a mais infinitesimal margem de erro, sinto-me um pequeno porém gracioso e imbatível Deus das palavras.
Tenho-as ao meu redor, prenho-as com sentidos ora extras ora meramente tolerantes, pego-as com tamanha facilidade, tal qual o gajo enfurnado num bosque catando folhas. Tudo muito fácil. E nessa facilidade limpa defino minha existência como uma meticulosa aventura de manter-me incessantemente nada aborrecido.
Pensa que é fácil?
Você me desculpe a franqueza mas acredito com bastante exatidão que para escorrer sobre si mesmo essa calda cremosa e quase morna precisa às vezes forjar em meio à clareza pequenas mentiras. Inócuas mentiras. Que muito cá entre nós irão de fato alegrar nossas jornadas feito pontos de lápis preto em papel muito branco. Assim feito estrelas. O que nesse ínterim, ao constatar estrelas nesse vocabulário parco e desengonçado me inclino tardiamente a citar: “Nada, nem mesmo a chuva, tinha mãos tão pequenas”.
Você pode imaginar? Assim como as palavras. E muitas mãos. E muito bem delineadas. Pequeninas coisas falantes as mãos das palavras.
E é então que, definitivamente, duas ou três vezes por ano sinto-me faminto belo, e minhas pegadas sobre o reino das falas alucinantes são de fato as de um Deus que além de gracioso é também imbatível em descascar as palavras. Feito batatas. E mexer com elas. Como quem mexe numa gaiola cheia de bichos peludos. E num pequeno ítem tudo decimal prevejo que mexer com eles torna-os alegres. E torná-los alegres significa azeitar esse mundo vasto e repleto de coisas. Tão vasto que faz-me vibrar impressionante. E entre um ano e outro, no limiar das coisas dinâmicas, continuo a repetir com uma voracidade aguda que tal moinho de combinações sinônimas é às vezes tão violento que eu me sinto mesmo é enormemente.
Imagem: Rubens Matuck
(Existe uma história curiosa por trás desse texto. Em 1994 um grande amigo me liga e diz: você não acredita no que o meu filho falou. Faminto Belo. Era uma criança de três para quatro anos. Foi como acionar um circuito elétrico. O texto saiu de estalo. Pouco tempo depois, munido de uma folha A4 impressa, levo para outro amigo, que ao cabo de poucos dias fez um estudo de caligrafia e cor, e eis o resultado. Outra curiosidade é que essa peça foi publicada no RL assim que eu cheguei aqui, 2008, mas havia esquecido completamente, até agora. Tomo a liberdade de colar 3 comentários).