A HISTÓRIA MAIS TRISTE DO MUNDO

Por duas vezes concebeu e em nenhuma foi chamada de mamãe. A primeira, nos verdes bem verdes anos, rendeu uma pequena viagem para ficar “alguns dias” com uma amiga da família, de onde voltou com o ventre vazio e dolorido. Era o tempo de sentir vergonha, salvar as aparências, sacrificar fetos no altar da conveniência social. Na segunda, ocultou o estado com sucesso, considerando que era gordinha, e o fruto que caiu no mundo foi registrado pela mãe e pelo padrasto, numa adoção à brasileira. Quando crescido, o filho a via apenas como objeto de escárnio, então alienado de sua própria história pelo mesmo costume social antigo de alienar-se da própria sexualidade. Essa mentalidade, nos tempos de hoje, não seria compreendida por uma juventude que conhece os caminhos do sexo desde cedo, e calmamente se posiciona como praticantes, sem histórias sobre punições divinas ou linchamento social por causa disso.

Quando o andar do ano traz o segundo domingo de maio, ela presenteia sua própria genitora. Entretanto, ninguém a parabeniza ou lhe dá uma flor. Talvez pense nos filhos, os dois, de certa forma, definitivamente perdidos. Talvez não. O mais provável é que não tenha uma imagem de si como mãe e sim, se veja sempre como uma criancinha dependente.

Passou os dias de sua mocidade entre dois gatilhos de ansiedade: de um lado, os ataques epiléticos que vinham sem aviso e levavam um pedaço de sua memória sobre o que acontecera durante o acesso. Diagnosticada, entretanto, sofreu muitos anos ainda, por que não se interessaram em ajustar melhor sua medicação. Do outro lado, o período das regras vinha com enorme sofrimento e aparência invulgar, quando o endométrio se soltava em pedaços enormes, parodiando sem querer o dia que tivera o útero raspado com um arame nas mãos da fazedora de anjos. Quando melhorava de um, sobrevinha o outro. Nos intervalos ela estava exaurida, sem gosto pela vida, insegura, com medo e descompensada. Ou seja, com raiva. E disposta a extravasar a raiva sobre o mundo sem trégua e sem distinção.

Ajunte-se, ainda, que desde os vinte anos era reconhecida como “fraca das ideias”, uma expressão que exprime leve deficiência mental. Não era inteiramente capaz de prever consequências. Assumia responsabilidades e as largava tão logo se entediava, saindo para procurar alguém com quem se entreter conversando. Em contraste, cuidava muito bem de sua casinha, mas não lhe dessem nenhuma outra ocupação. Seria abandonada. Uma amostra de sua limitação mental vinha de cobrar a mesma dívida diversas vezes, pois esquecia que estava quitada, e ser incapaz de perceber quanto dinheiro gastara e quanto sobrara. Foi ensinada a comprar sempre as mesmas coisas nos mesmos lugares, e assim conseguia manter o abastecimento de sua casinha e as próprias vestes e calçados com o benefício que recebia.

Alguns dirão que sua emoção dominante é a raiva. Praticamente todos que a rodeiam foram, alguma vez, cortados de suas relações ou acusados de atos imorais aos gritos, espalhando perdigotos pela cara da pessoa. Ela agride verbalmente da mãe até o Papa. Parece estar em constante estado de revolta. Mas na verdade, sua emoção de fundo é medo. Medo de ter outro ataque no meio da rua. Medo de ser abandonada novamente. Medo do futuro que nunca lhe acena com alegria ou segurança. Medo de sentir o que ela sente, quando pensa nos diversos traumas que coleciona, sem receber da família o apoio e o acolhimento que curam. Ela sente medo o tempo todo e se defende de forma canhestra e equivocada. Não tem paz. Sabe-se lá qual a profundidade da sua tortura interna.

Ela não tem realizações para elencar. Aprendeu cedo a cuidar de uma casa e cuida da sua, apesar da quantidade absurda de bibelôs, retratos e outros enfeites ocupando todas as superfícies. É um cenário de naufrágio com cheiro de naftalina. Além de não jogar nada fora, ainda coleta coisas que outros tenham descartado. Só de ventilador quebrado, tem quatro. São tantos objetos dentro da casa, que faz suas refeições na mesinha da varanda, por enquanto relativamente livre de acúmulo. Além disso, também é manicure, mas por diversos motivos não tem mais clientes, voltando à dependência da mãe que caracterizou o seu meio século de existência. Tudo que usava, vestia e comia vinha da mesma mão, bem como o socorro nas crises de epilepsia e outros males menores colaterais ao uso de medicamentos fortes. Essa mesma mãe que tinha marcado seu desenvolvimento emocional com traumas que ela não tem como superar sozinha, e para os quais não procura ajuda especializada.

Teve um marido na igreja e no papel. O casamento poderia sustentar-se no início: era criança casando com criança. Mas o marido continuou se desenvolvendo e amadurecendo, enquanto ela parou nas caras e bocas de garotinha do papai. Por fim, cada dia era só uma validação do crescente abismo entre esses dois seres, ainda mais fundo quando surgiu uma loira (sempre é uma loira, mesmo que de farmácia) e a renovação de forças do amor. Ele simplesmente se foi. Sem bilhete de despedidas, sem partilha de nada, que o que tinham era só o de viver cada dia, e principalmente sem desculpas. Ela ficou só para deslindar as histórias do ex-marido em quintais alheios e para ecoar os sons do abandono no vazio em que tinha se tornado seu lar. Uma vez na vida estava conhecendo um simulacro de ser feliz; e, sem ter feito nada intencional para tanto, via-se arrancada do que poderia ter sido seu espaço seguro.

Mas não foi só o marido que ela perdeu. O homem que na verdade era seu pai rejeitou-a ainda bebê. O outro pai que surgiu, foi bom e amoroso até nascer a irmã mais nova, a partir do que ela passou ao segundo plano. O terceiro era pessoa cuja ausência se festeja e, por azar, foi quem durou mais tempo na casa. E o quarto, seu marido, foi aquele que sumiu sem dizer adeus. Em apenas duas décadas e meia de vida, ela tinha conhecido mais de um abandono e ainda a violenta rejeição pela figura paterna, restando a indiferença emocional da figura materna como ponto de referência naquela vida feita de caos.

E a mãe, tão boa, tão doadora? Era exatamente isso: uma provedora indiferente. Sabe-se lá onde ela poderia buscar um modelo de relacionamento que lhe permitisse manter e cultivar as amizades que faz com certa facilidade. Mas não. O roteiro dela diz que sempre vai ser abandonada, então ela abandona antes. Briga. Grita. Xinga. Explode e sai. E em tudo isso está pedindo que venham atrás dela e a façam voltar. Mas ninguém vem. E mesmo os que compreendem o apelo não verbalizado dessa atitude, temem sucumbir ao tamanho de sua necessidade emocional como uma formiga num redemoinho. Passado algum tempo, pode até voltar à amizade. Mas aí já terá o novo conhecimento, ou o velho conhecimento sempre reiniciado: não vão pedir por si. Tanto faz a terem ou não por perto. O vínculo ainda é dos outros. Para ela, resta a procura. Mas a família que ela não teve, por mais que procure, nunca será encontrada. Essa é a lição básica das pessoas que crescem com problemas familiares, e embora simples e direta, demora para ser compreendida. No entanto, só compreendendo e parando de ansiar serão capazes de se libertar do jugo do amor idealizado e conviver com esse mundo, em toda a sua graciosa imperfeição.

Refém da eterna rebelião de seu corpo e ancorada em nenhum modelo afetivo, busca incessantemente por distração, e por isso tem relações com toda a vizinhança e mais além. Conhece todos, está por dentro de quem vai se mudar e de quem vai chegar. Precisando de um profissional disso ou daquilo, ela sabe. Precisando de uma informação, ela sabe. Por vezes, como uma clareira de tempo bom no meio da tempestade, emerge dela uma personalidade assertiva e bem centrada. Esta é capaz de resolver problemas, se fazer ouvir, dar ordens. Nessas ocasiões, procede como alguém que tem intimidade com o poder e nenhum problema com o ato de mandar. É como ver, entre os andrajos do pedinte, luzir uma poderosa rainha. Quiçá em vidas passadas foi isso mesmo, soberana e irretratável.

No entanto, seu séquito, quando o tem, é formado por escarnecedores. Moleques e algum adulto mal crescido, que, detectando a diferença mental, botam-lhe apelidos e riem das provocações que inventam. Seres assim são uma constante nesse mundo, bebedores de água contaminada e vomitadores de fezes verbais. Concebidos por um espermatozoide purulento em um óvulo degradado. Vicejam como parasitas vizinhança da tragédia alheia, eles mesmo em nada valorosos e distinguidos, e que, caso tivessem que enfrentar a jornada da pessoa com deficiência, por fracos que são, sucumbiriam; ou se a vissem em algum ente querido, pediriam respeito para os seus, o mesmo respeito que não dão ao próximo. Não fosse por tais caracteres indignos da humanidade, a vida dos portadores da chamada deficiência seria menos áspera. É um assunto que não se debate nas igrejas e nos lares, no máximo merece uma palestra sobre bullying na escola, e que está a pedir uma reforma de atitudes e conceitos se queremos realmente ser uma civilização.

Mesmo assim, quando acontece de ter que enfrentar os escarnecedores, ela os enfrenta. Com caras e bocas, com pragas e gritos, com o que for possível. Isso não faz nenhum bem ao seu autocontrole, mas pelo menos dá resultado. Ela nunca cedeu um centímetro do espaço onde queria ficar, com ou sem a presença desses papalvos. Pelo menos aparentemente. Sabe Deus o que pensará quando, na solidão de sua casinha, se deita para dormir. Os momentos mais marcantes do dia assomam ao pensamento, e o que dizer da vida quando esse momento foi sofrer bullying? É por pessoas assim que as nossas preces por misericórdia não podem parar.

Passou toda a vida na dependência material da mãe e, quando entrada em anos, tentou conseguir uma aposentadoria, foi recusada duas vezes. Da terceira uma amiga orquestrou o processo e pediu o BPC. Conseguiu. Era de ver sua alegria quando, finalmente, teve um dinheirinho seu. Parecia que era uma realização pessoal. A personalidade generosa aflorou. Deu dinheiro para os parentes, comprou presentinhos. Estava feliz e queria ver todo mundo feliz. Mais tarde, descobriu que tinha, não uma aposentadoria, mas um benefício, e portanto não tinha direito ao décimo terceiro salário. Novamente a vida dera a ela menos do que aos outros; passou uns dias interiorizada e pensativa, mas deve ter se conformado, pois voltou à sua rotina de ir de lá para cá e de cá para lá procurando uma roda de prosa.

Em nenhum momento ela foi vista ou ouvida fazendo comparações. Ela não faz. Esse é um superpoder dela. Grande parte das bençãos consiste em evitar alguma coisa. Que evite comparar-se, já que do comparar-se nascem as decepções. Se o fizesse, sucumbiria. As amigas e conhecidas de infância deram rumo à vida e colhem frutos na terceira idade. A irmã estudou e teve um bom emprego até aposentar. Os filhos dos outros prosperam e trazem netos para os pais. Nascer, crescer, trabalhar, casar e morrer é um projeto de vida frustrado para ela, que, estacionada na segunda etapa, nem sequer é percebida como lutadora diante de todas as desvantagens que carrega.

Sobre a mesa da cozinha, em sua casa, há um velho retrato. Mostra uma menina de aproximadamente dez anos, vestindo uma jardineira xadrez pregueada. A menina suspende as laterais da saia como se fosse fazer uma reverência. Usa meias brancas com barrado de renda e sapatinhos de verniz estilo boneca. Tem fitas no cabelo e um sorriso no rosto. A menina é ela, num tempo mais simples, quando ainda tinha uma certa estrutura familiar ao redor de si, antes de perceber os conflitos do mundo, e não era em nada diferente de suas coleguinhas. É uma menina com um futuro: pode ser alguma coisa, pode completar ciclos e passar aos novos, pode deixar-se moldar pela sabedoria da vida. Ela já foi essa menina.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 22/05/2023
Reeditado em 22/05/2023
Código do texto: T7794865
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.