CANTAROLANDO

 

            Hoje pela manhã ao me levantar e iniciar os afazeres primeiros do dia, que são a oração e a higiene pessoal, repentinamente pus-me a cantar. Cantei por um bom tempo as canções que sempre cantava diariamente, quer no banho debaixo do chuveiro, quer nos instantes de silêncio entre os afazeres, quer às vezes fazendo algo. E depois dei-me conta de que estava cantando, o que me deixou abismado, mas alegre e rindo.

            Percebi, porém, que as músicas que sempre cantava já não o fizera por completo.  Uma após outra sempre ficava faltando um pedaço de cada uma delas. A memória estava adormecida, embora não tanto, porque ao repetir as canções elas voltavam com mais letras e as lacunas iam se preenchendo por si mesmas. E cada vez que vinham mais, mais eu me punha a cantar. E cantei por um bom tempo.

            Quando decidi parar de cantar, agora uma decisão consciente, já que ao iniciar a cantar foi ato inconsciente, a minha mente objetiva começou a análise do ocorrido. Ela não buscou descobrir por que o canto foi iniciado, ela se preocupou em observar a minha reação a partir de quando me vi cantando. Sentiu a minha satisfação, parecendo que eu voltava no tempo, para registrar que eu cantava sempre, talvez porque minhas responsabilidades e obrigações eram bem mais leves e que aquelas épocas me faziam cantar pela sensação que tinha da beleza vida, que fluía tranquila, sem tantas correrias e incertezas. 

            Os dias atuais são tão carregados de compromissos e obrigações que não nos deixam tempo nem para nós próprios. Eles nos consomem sem interrupções, não nos deixam cantar, mesmo quando estamos debaixo do chuveiro, onde limpamos o corpo e a alma, absortos no escorrer da água que nos purifica. As coisas chegam e vão embora rápido, tudo é acelerado e sem definições, nada é certo, inclusive o amor. Vivemos uma era de incertezas e de solidão que nos fazem não mais cantar.

            O resultado analítico da minha mente me fez olhar que me devo olhar. Eu tenho olhado muito para fora, para o meu trabalho que sempre de mim mais exige, para a minha família, para os parentes e amigos, para as instituições que faço parte, sempre me desdobrando como se fosse inúmeros clones e me esquecendo de mim. O cantar espontâneo e inconsciente foi a janela que se me abriu para que o vento por ela entrando me dissesse: ei, pensa um pouco em você. E assim, por ter cantado nesse dia, vi que muitas das coisas que gosto de fazer já não faço mais ou pouco faço.

            Gosto de ler e pouquíssimo tenho lido. Gosto de escrever e pouco tenho escrito. Gosto de estar com os amigos e pouco tenho encontros com eles. Gosto de viajar e pouco tenho viajado e, quando viajo, tem sido a trabalho, por força das minhas obrigações. Gosto de assistir filmes e não mais os tenho assistido. Gosto dos meus saborosos drinques e pouco os tenho degustado. Gosto tanto de tantas coisas outras que já nem me lembro.

            Cantar, pois, nos dá o ar de liberdade, nos faz sonhar, nos faz sorrir, nos faz viver. Preciso me rever, preciso respirar, preciso dar-me a mim mesmo. Esse cantar inusitado foi um alerta que não pretendo deixar escapar. E vou recomeçar, cantando todos os dias como fazia antigamente. Afinal, eu sempre soube que todo dia é dia de cantar. E para cantar não precisa ser afinado, basta abrir a boca, soltar a garganta e deixar o coração falar. Cantar é próprio de quem ama, já disse Santo Agostinho.

Ailton Elisiario
Enviado por Ailton Elisiario em 21/05/2023
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