O MILAGRE DA PESCA DA MOEDINHA

Quando eu me anunciei na entrada daquele condomínio, o Senhor José já estava lá a me aguardar, com a porta da garagem aberta para que eu acomodasse meu automóvel. Parecia um milagre.

Homem pontual, gentil e eficiente.

Não se tratava ele apenas dum porteiro, daqueles que , muitas vezes , logo criam dificuldades na entrada, frente a qualquer imprevisto que fuja às regras condominiais.

Não faz muito tempo, num chamado urgente, ouvi assim do porteiro: "entre apenas pelo elevador de serviços".

Com certeza, naquele dia, entendi o quanto nos falta o "tato" pessoal , o respeito pelo outro e o conhecimento da dinâmica e das leis da vida em sociedade.

Deixei pra lá...e pensei "dias melhores virão". E vieram... numa maravilhosa antítese de vida aqui formatada em crônica.

Posto que, com o senhor José, logo se via, tratava-se dum verdadeiro "CONCIERGE"...de alma.

Naquele local da cidade de São Paulo, bairro tradicionalíssimo, embora hoje também haja as mesmas tristezas que encontramos por todos os cantos da cidade, ele mais parecia um personagem curioso, como se a sair da vida e da boa "educação" do túnel do tempo.

De fato, destoava do costumeiro...

Vestido de terno e gravata, devidamente postado na sua mesa de madeira maciça repleta de canetas, papeizinhos e demais utensílios administrativos, cumpria ele seu trabalho com extrema satisfação...como se o primeiro dia fosse.

Apresentamo-nos, segui para o meu andar e na volta ainda nos houve tempo para um "papinho amigável".

Então, pude saber que lá estava ele, a postos, há exatos quarenta e cinco anos, época dos tempos áureos de Sampa.

Ali, os condôminos não lhe eram apenas empregadores, mas sim, pude sentir que lhe são como queridas pessoas da família.

Por ele, passaram gerações e suas histórias ali seladas.

Contou-me que daquele emprego saíram as finanças para a formação universitária de três filhos, hoje homens feitos e íntegros, pois acredita ele ter sido a melhor herança que lhes podia deixar; e com lágrimas nos olhos, ainda me relatou o martírio duma grave doença pela qual um de seus netos, menino de vinte e poucos anos, hoje enfrenta.

Parecia desabafar os soluços do seu coração e eu o auscultei com toda atenção...

Homem forte que é, logo enxugou as lágrimas e continuou a me contar uma história que ele carrega no bolso do tempo., como um troféu de vida; cena tão linda, que eu a trouxe à minha presente crônica.

Certa vez, conta ele, foi abordado por uma moça que passava ali pela calçada a lhe pedir algo: "Por favor, será que o senhor teria algum dinheiro para que eu pudesse colocar meus documentos em ordem para uma vaga de emprego ali naquele supermercado da esquina?"

Então, disse-me, colocou a mão no bolso e ajudou a moça com uns trocados e algumas moedinhas que tinha.

Tempos depois, a moça o procurou para lhe agradecer e lhe devolver o dinheiro, a lhe contar a boa nova: tinha conseguido o emprego.

E ele, notoriamente emocionado, me concluiu: "Jamais pegaria o dinheiro de volta, o êxito no emprego me foi um presente".

A tal moça continua lá até hoje, trinta anos depois, no mesmo local de trabalho, uma rede grande de supermercados da cidade, onde teve sua ascensão profissional.

Disse-me o senhor José que, certa vez, ali foi homenageado numa oportunidade em que foi comprar algo , como sempre faz até hoje.

Histórias anônimas, sem holofotes, de pessoas anônimas que silenciosamente fazem a diferença na vida dos outros, merecem ser relatadas. Mais que isso, nos são estímulos de esperança...num triste momento como o nosso.

Saí dali extremamente comovida , super pensativa com meus botões que sempre fazem analogias.

Sim, outros dias virão...

A história é muito simbólica, pincipalmente nos dias de hoje, onde em cada esquina há um malabarista da vida a buscar soluções nas "empresas semáforos". Época na qual temos a sensação que enxugamos gelo pelo social tão deteriorado.

O senhor José, e tal eu lhe disse ao sair dali, talvez sem perceber, praticou uma grande lição de verdadeira "vontade" e compromisso social sustentável: não doou apenas o seu "peixe", mas forneceu o "anzol" para o sempre revolto mar da vida.

E a moça venceu porque foi aprender a pescar...