Eu e minha pequena rede.
No início, tudo que me lembro é que havia paz. E depois da paz surgiu a dor.
E da dor surgiu a escuridão. E da escuridão fez-se a luz. E do alto eu senti o vento, vi os montes e as matas.
Eis que um gigantesco pássaro sobrevoou a Terra. E de suas entranhas me cuspiu no mundo. Olhou para mim já distante e partiu. E neste mundo estranho precisei sobreviver e tudo que eu tinha era uma frágil rede de caça que havia fabricado com os materiais que fui encontrando pelas redondezas; cipós, fibras de folhas, resinas de árvores.
Caçava pequenos animais e assim sobrevivia. Animais maiores danificavam minha rede e eu levava horas refazendo ela, tecendo, remendando, até que ficasse boa novamente. E meus pratos e panelas eram os ossos dos animais que caçava.
Certo dia senti minha carne mole, como que estivesse ficando doente, e fui ficando pálida. Procurei um abrigo onde me protegeria do frio e dos predadores. Encontrei um pequeno oco de árvore onde podia me esconder.
Assim que entrei naquele abrigo a entrada se fechou, e o espaço foi se apertando. Tão apertado que parecia que ia me esmagar. Me sufocar. Eu e a árvore nos tornamos um só. A sensação que seria de morte, na verdade foi de renascimento. Senti-me curada, protegida, mais forte, e mais jovem. O abrigo onde estava absorveu-se em mim e já enxergava através dele. E então me vi rejuvenecida e de volta à caça.
Nos dias quentes de verão a caça era farta e eu precisava refazer minhas armadilhas o tempo todo. Tanto trabalho para sobreviver que o tempo passava corrido, e de repente já era noite novamente.
E assim foram passando os dias, as noites, os meses...
E outra vez me senti fraca, como se tivesse me alimentado de algum animal venenoso. E procurei abrigo novamente. E lá estava o grande oco de árvore. E neste ritual me senti atraída por ele e tudo ocorreu novamente. O abraço, a união, o fortalecimento, o rejuvenescimento.
De tempos em tempos o ritual se repetia, e eu já não tinha medo, mas em certo momento me percebi jovem demais. E com a jovialidade vinha a inexperiência e a falta de força para cercar as caças e num dia de sol quente, senti um incômodo no abdômen, e a sensação de enjôo, e me agachei e senti que ia vomitar, provavelmente a última refeição.
E fui vomitando pedaços do que havia comido, só que estes pedaços iam se juntando, se colando, se refazendo, e diante de mim se formou outra criatura idêntica a mim, e continuei vomitando e me pareceram horas, talvez dias. Confesso que não tinha mais noção do tempo. E fui vomitando várias cópias de mim mesma. Duas, três, dez, vinte. Já não conseguia mais saber quantas irmãs gêmeas estavam diante de mim, e percebi que algumas delas também vomitavam outras gêmeas de todas nós.
Quando tudo aquilo acabou éramos algo em torno de 300 irmãs gêmeas, talvez mais. Todas muito jovens e com aspecto de famintas.
Depois de um dia ou dois, senti novamente a sensação de fraqueza, mas desta vez não havia oco de árvore para me esconder e todas nós nos unimos em um abraço, pois estavamos todas fracas e então o chão ao redor de nós foi nos cobrindo, como se estivéssemos nos tornando estátuas, personagens de uma mesma obra de arte. Éramos fetos dentro de um outro corpo. Éramos ovos. Éramos nada...
E assim foi a minha vida de aranha, de trás para a frente.