A pandemia é um problema só dos humanos

 

Sentei-me ontem, como de costume, debaixo do meu pé de cupuaçu, quando chegavam agradavelmente o sol e a brisa suave da manhã. Olhei a hora e vi que eram 7h50, embora parecesse ser mais cedo. Ia tomar minha primeira xícara de cafezinho preto do dia, como sossegadamente gosto de fazer. Ultimamente, é claro, devido à pandemia, suas incertezas e preocupações, não tenho sentido lá tanto sossego assim. Isso, contudo, logo haverá de passar.

 

As réstias douradas do sol chegavam bem vivas passando por entre as folhas do pé de cupuaçu e as palhas dos coqueiros, e fazendo realçar ainda mais os efeitos da sombra e da brisa. De vez em quando, sombra e sol se moviam, indo e voltando, devido ao balançar natural das folhas e palhas das árvores. Que maravilha, o vento de verão já começava a dar o ar de sua graça!

 

Comecei a tomar o café, saboreando gole a gole, sob os eflúvios do ambiente, que também era sonorizado pelo gorjeio de pipiras, fogo-pagou, bem-te-vis e pardais. Além dos passarinhos, os dois galos do terreiro cantavam em verdadeira porfia, pelo visto, cada um querendo ser mais do que o outro. As galinhas, por sua vez, também cacarejavam bem alegres. Completando o cenário, bem mais longe, além do muro e do outro lado da rua, uma curica pousou inteiramente à vontade na palha de um coqueiro e, alegre e despreocupadamente, passou a cantar.

 

Não era para menos, fiquei admirado de tanta harmonia levada a efeito tão naturalmente: não se vislumbrava medo nem preocupação alguma. Linda, alegre e descuidadamente acolhedor, todo o conjunto levava à incontestável conclusão de que a natureza está inteiramente alheia à pandemia do novo coronavírus. O problema pandêmico, queiramos ou não, é tão somente dos seres humanos. Não afeta os demais seres, animais e plantas, os quais seguem a vida normalmente.

 

Como não poderia deixar de ser, lembrei-me imediatamente de O amanhã não está à venda, do escritor indígena Ailton Krenak, que li recentemente, obra fisicamente pequena, mas de grandioso conteúdo sociológico e filosófico. Krenak, falando da pandemia, diz a certa altura:

 

Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise.

 

A natureza reage e nos cobra a conta, que vem cada vez mais alta em cada acidente, cada catástrofe. Aprendi, ainda adolescente, o significado de endemia, epidemia e pandemia, que, de forma simples, reproduzo. Endemia, doença típica de uma região, onde ocorre frequentemente, como, por exemplo, era a malária em nossa região. Epidemia, ocorrência ao mesmo tempo de uma doença em vários bairros de uma cidade, ou várias cidades de um estado, e assim por diante. Uma epidemia de sarampo ou de varíola, por exemplo. Pandemia, a ocorrência mundial de uma doença.

 

Assim, para mim, pandemia parecia algo impossível de acontecer. Aí está, porém, a incidência mundial e repentina do novo coronavírus, além de outras pandemias já verificadas em menor escala. A pandemia não só é possível, como também é um perigo concreto nos tempos atuais, dado que a tecnologia e os meios de transporte tornaram o mundo fisicamente acessível, de extremo a extremo, em curtíssimo espaço de tempo, por pessoas em carne e osso. O mundo tornou-se tão pequeno quanto a nossa casa. As viagens que antes demandavam muitos dias hoje são feitas em algumas horas.

 

Concluindo, bom seria se a humanidade, depois da pandemia, mudasse para melhor em muitos aspectos, o que, infelizmente, não é de se esperar. Qualquer mudança, porém, será bem-vinda. Vale refletirmos com Ailton Krenak, quando ele diz, por exemplo: “O mundo não pode parar. E o mundo parou.”  E mais à frente: “Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã.”