Um sorvete por uma Leitura

É sábado.

Se não fosse a necessidade de dois empregos para custear todas as despesas mensais estaria em casa, mas as responsabi-lidades me atraem para mais um expediente de trabalho que se finda às 19 horas, hoje sou telefonista.

Das minhas profissões, uma por experiência e outra por vocação, sempre destaco aquela que sinto amor: Sou professora e o simples som dessa palavra ecoando em minha mente emociona.

De dois anos pra cá costumo dizer que faço honra a minha dedicação de tempos atrás. Lecionar não é apenas minha paixão, é onde me sinto parte do mundo e capaz de transformar a vida de alguém. Alguns podem achar clichê, mas sim, eu vejo a educação como libertadora, capaz de mudar o destino daqueles que a acolhem.

Voltando. 13 horas, nada de almoço. Desde o levantar ao chegar aqui o dia parecia agitado demais e com notas de azar e desastre. Mesmo o almoço solicitado e que demorou quase uma hora para chegar... Chegou incompleto. A alternati-va? Segunda chance para uma quentinha express!!

Almoçar e trabalhar ao mesmo tempo não é das minhas ações favoritas, mas já dizia o ditado que “saco vazio não para em pé” então vamos lá. Ao menos dessa vez chegou rápido!!

Mesmo aqui costumo receber a visita de meus alunos. Problemas na escola, discussões entre amigos, assuntos de famí-lia, são várias as razões das visitas. Confesso que me sinto feliz por ser querida entre eles e os acolho como meus, é difícil saber a necessidade do outro, mas amor é sempre um bom remédio pra tudo.

Dentre todos eles um se destaca. É talvez o que menos fala aqui, o que mais agita as minhas aulas, o de menor idade, mas sabe, confesso que é dos que me arranca mais sorrisos. Ele sempre chega me contando novidades, perguntando sobre suas notas e olha que em sala é dos mais bagunceiros. Passei a dar aulas para a turma dele em fevereiro deste ano, os rumores são de que ele vive em condições de risco, enfim... aquele pequeno tem vida difícil.

E hoje ele apareceu.

13:30, sol quente lá fora. Percebi vergonha nos olhos dele ao me deparar com um prato de comida a frente. Eu sabia o que aquele olhar dizia e minha garganta deu nó. Não consegui sequer engolir em seco. Ele hesitou, foi minha insistên-cia para entrar acompanhada de um sorriso largo que o fez tomar coragem. Ele enfim aceitou o convite.

- Quer almoçar comigo? Tem batata frita.

- Não tia, estou sem fome.

-Tem certeza? Tem bastante pra nós dois.

Não houve resposta. Ele apenas sentou-se em um banco a minha frente e passou a folhear um jornal.

-Está quente lá fora não é tia?

-Sim, está. Conta-me, o que você almoçou hoje?

-Hoje nada tia, amanheci sem fome.

-Nem café da manhã?

-Não gosto de café.

Respostas curtas, sem rodeios, mas aqueles olhos continuavam sedentos. Conhecendo-o bem, sabia que não aceitaria por vergonha mesmo a necessidade estampando seu rosto. Na minha boca não passaria nada se aquela cena continuas-se.

-Pode ler uma notícia para mim?

-Eu, ler? Tenho vergonha tia.

-Vamos lá! Estou um tanto ocupada aqui, mas gostaria muito de saber sobre aquela notícia bem ali.

Indiquei, mesmo longe, para uma imagem que parecia sobre reciclagem. Nessas horas desenvolvimento sustentável entra em sintonia com geografia... E este espaço torna-se sala de aula.

- Vou te propor um desafio, topa?

Silencio total. Continuei:

- Se ler a notícia toda pra mim, deixo você escolher seu prêmio. O que acha?

-Qualquer prêmio?

Confesso que estremeci, não poderia ser algo caro, pois dinheiro havia pouco na carteira. Mas afirmei.

-Sim! O prêmio que você quiser.

Ele me pediu água, hesitou mais alguns instantes, e enfim começou.

A notícia falava sobre a importância dos ecopontos de coleta nas cidades e a necessidade da população em se conscien-tizar sobre reciclagem, nada de novo para mim e absurdamente recompensador para ele. O som baixo daquela voz ju-venil lendo foi cativante. Ele concluiu.

-Parabéns! Viu só como você lê bem!

- Acha mesmo tia? As pessoas poderiam ajudar na reciclagem, tem gente que ganha a vida assim né tia.

- Sim. Você leu muito bem e aprendeu uma ótima lição.

- Posso escolher meu prêmio?

- Claro! O que quer?

- Sorvete de chocolate!

Eu sorri. Deixei meu prato de lado que há tempos havia perdido a graça e me levantei... Peguei apenas a carteira e a mão daquele menino, abandonei minhas obrigações por alguns minutos e fui ao estabelecimento ao lado comprar o tão esperado prêmio.

Ganhei um abraço apertado e pude ver sorriso naquele olhar enquanto os meus marejavam. Eu sabia que em seguida ele iria, então aproveitei mais um pouquinho o abraço apertado daquele ser.

- Tia!

- Diga meu bem?

- Podemos fazer isso de novo?

- Isso o que?

- Uma leitura por um sorvete! Fazia tempos que não comia um.

- Claro meu bem, podemos fazer isso mais vezes.

Ele partiu, e muito dele ficou em mim.

Córdia
Enviado por Córdia em 13/05/2023
Código do texto: T7787072
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