Heráclito com a água pelas canelas


Devemos à propaganda enganosa de humanistas de todos os tempos esse ar de imponência e autoridade que ainda possuem os grandes pensadores do passado. Alguns foram colocados tão próximo da santidade que é possível dizer que há devotos de Sócrates, Platão, Aristóteles, e até de Hegel e Marx, este último ganhando de vários corpos todos os outros.

Nietzsche, o nosso bigodudo frenético, baixou quanto pôde a bola dessa rapaziada mais antiga, mas eles não perderam inteiramente a solenidade. Hoje são mais apúdicos, mas nem por isso deixam de causar impressão.

Não é o caso de Heráclito, quando lido sem a intermediação de mestres e doutores.

Depois de quase morrer de tédio no convívio com os principais das grandes famílias de Éfeso, cobriu-se de andrajos, abandonou irritado a cidade e passou a morar num casebre no alto de um morro. Era frugal no comer, gostava de conversar com as cabras, dormia em esteiras, no chão, e tinha um forno de pedras para aquecer-se durante o inverno e assar o pão de todos os dias. Ali, onde também moravam os deuses, dizia ele, meditou e escreveu o seu grande livro, hoje um punhado de fragmentos geniais usados e abusados pela posteridade.

De tempos em tempos, descia o morro e entrava no rio Caistro com a água pelas canelas. Matava a sede, tomava o seu banho, pegava um ou outro peixe de bobeira no pedaço.

Numa dessas, quando talvez coçasse mecanicamente o couro cabeludo ou a ponta de uma orelha, ocorreu-lhe o conceito filosófico mais bem-sucedido de toda a história do pensamento ocidental: o devir.

Com a água pelas canelas, vejam só.


[14.12.2007]