Filha da raiva e do desespero
Já passa das dez da noite e ele caminha sozinho por uma rua escura e deserta. Corre o risco de sofrer um assalto, mas não liga a mínima para isso – ao contrário, até deseja que alguém surja e lhe aponte uma arma, porque aí ele, enfurecido, vai dizer ao assaltante: “Acaba logo com essa merda!”. Mas ele sabe que não vai surgir ninguém, Deus não realiza os desejos assim tão facilmente, e menos ainda esses desejos que são filhos da raiva, do desespero e do vazio.
Está nitidamente cansado de tudo. Sente-me esmagado pela certeza de que o seu melhor não é o suficiente – ah, o seu melhor é pouco, tão pouco... Nem mesmo o tempo é algum remédio. Durante todos esses anos, as coisas nunca aconteceram com o tempo. Só acontecem as coisas que ele faz acontecer – e, como ele faz tão pouco, e ainda faz mal, como irá conseguir alguma coisa? O seu melhor não chega ao básico dos outros – e os outros, ah, os outros são terríveis.
Sente o desejo de ser consolado. Sente que é vítima de uma injustiça! Não é possível que não vejam que ele tenta, que ele faz o que pode! Não é possível que o seu desejo não seja justo! Ele não quer carro, não quer casa, não quer dinheiro: quer apenas um jeito de lidar com a sua solidão, mas não consegue... E, no entanto, outros conseguem o carro, a casa e o dinheiro – e não estão sós! Será que é errado querer ser consolado? Será que só há aspereza nessa vida?
O pior é a sensação do vazio. Ele vai chegar em casa e não vai abraçar ninguém, não vai beijar ninguém, não vai nem mesmo falar com alguém. Se ele fosse mesmo assaltado, ninguém iria saber. Como ninguém sabe se ele janta ou se ele deixa de jantar. Ele pode fazer o que for, tudo pode acontecer com ele, e o mundo não se importará, seguirá sua marcha normalmente. Está ele errado em querer que alguém se importe? “Devo estar, sempre estou”, é o que ele pensa.
E não há sensação mais angustiante no mundo que a do desconsolo, achar que nem mesmo Deus, se Deus existe, irá fazer algo por ele, mas que tudo, absolutamente tudo, deve ficar nos seus ombros. Deus provavelmente só fará algo se ele se mexer, se fizer alguma coisa por si só, se cumprir certos ritos, se comprovar ser uma boa pessoa – e ele se sente a pessoa mais má de todas. Não, Deus não pode fazer nada por pessoas como ele, sendo desse jeito como ele é.
Chega ao ponto de ônibus sem ser abordado. Ali há mais pessoas, gente que conversa, gente que ri e se abraça. Ele sente que pode viver 90 anos e não ter um único momento de conversa verdadeira com alguém. Imagine que sonho, poder se abrir para alguém! Isso é para poucos. As pessoas que o veem todos os dias, o que sabem elas a seu respeito? Não o conhecem! Não fazem ideia de quem ele seja! E, no entanto, talvez ele não seja tão ruim quanto aparenta.
Ele queria, de aniversário, um momento em que pudesse conversar com alguém e fosse uma conversa que não fosse atrapalhada por nenhuma situação externa, que eles não tivessem que voltar a trabalhar, que não tivessem que se separar porque chegou a hora de descer, que não fosse algo que acontece “durante” alguma coisa, mas que fosse a própria razão de ser do encontro! Sim, ele queria isso. Conversar! Mas Deus não realiza os desejos tão facilmente.