Apenas a fome
O ano é 1994.
Morre o ídolo do automobilismo, Ayrton Senna.
Quando do suicídio de Kurt Cobain.
O maldito Sampaio, da terra de Roberto e Rubem Braga, é impedido de lançar seu quarto álbum, por causa da cruel pancreatite.
Sua colega da Sociedade Kavernista, Miriam Batucada, vítima de um infarto fulminante, também se vai aos 47 anos, deixando saudades.
O original trapalhão Mussum do samba: Complicação no transplante de coração.
Outro Antônio Carlos, apelidado de Tom Jobim.
Parada cardíaca. Complicação na bexiga.
Coringa Cesar Romero. De velho.
Quando do tetra da Seleção Canarinha.
Nasce a Utopia de Guarulhos, com sua Brasília Amarela.
Cria-se o plano Real.
O revolucionário álbum Da Lama ao Caos, do Manguezal à Montreux.
Nelson Mandela é eleito Primeiro Presidente da África do Sul.
Lula perde sua segunda eleição presidencial, dessa vez para FHC.
O Rei Leão, em VH's.
Pink Floyd lança Division Bells, segundo álbum sem Roger Waters.
Sony lança primeiro Playstation no Japão.
Primeiro álbum do Raimundos.
Friends!
Castelo rá tim bum!
Ronaldo vence corrida internacional de São Silvestre…
Dona Leonilde Cruz Soares, 65 anos, e seu filho, Adilson Ramos Soares, 39, comem seio humano, achado num lixão de Olinda; comem assado com cuscuz. Porque tinham fome. "Não tinha o que comer e comi isso aí mesmo", responde, como um lamento de um boi que bebe lama pra não morrer de inanição. Dona Leonilde mora num barraco à beira do lixão com 7 dos seus 10 filhos.
Passaram mal ao comer o pedaço de carne já pútrido. Ela relata que, ao assar o achado, um líquido amarelado sai de suas entranhas. Mas ela come assim mesmo. Com cuscuz. É a fome que cega os olhos e inibe o cheiro. É a fome que leva ao desespero. É a fome que come lixo de aterro. É o desterro que não distingue bicho de gente. Crianças cercam um caminhão que despeja lixo hospitalar, e, nós detritos, uma delas acha um pedaço de pão e, naturalmente, o morde sob o olhar atento da mãe, que observa a cena de longe, e acena como quem diz "trás um pedaço pra mim". É a fome que transforma o bicho em homem e homem, em bicho.
Nasci dias depois que esse caso da senhora Leonilde se fez conhecer nacionalmente através da mídia. Tramaram meu nome antes mesmo do meu nascimento, e traçaram meus sonhos: "esse aí vai ser policial; não, esse aí vai ser doutor, é, doutor!" Vinte e oito anos depois, ao ler um maravilhoso texto de Paulo Freire, tive conhecimento do caso Leonilde. E o descaso continua, mesmo que não haja mais lixão.
Vinte oito anos depois, a notícia que mais me angustia, me deprime, é a da fome e da desigualdade; mas, por outro lado, a boa nova que me faz esperançar, é a luta sempre constante pela igualdade humana, seja de gênero, cor, raça, econômica… seja ela qual for!
Como diz o próprio Freire: "... é tempo de possibilidade, não de determinismo."