Galinha Cabidela

Tu visse o que o Cardinot falou de Pedinho, tio?

O quê?!

Que bandido bom é bandido morto

Mas Seu Carlos não tinha feito pergunta; era mais um espanto do que propriamente…

…E que Pedinho era um traficante periculoso da área. Que pala do carai! Os homi disse que ele correu, meteu foi bala na puliça; mas a puliça é treinada, né, tio. Quem já viu querer trocar bala com os homi…

Oxe, isso é conversa desses caras! Eu botei Pedinho no braço. Aquele menino era de bem. Mexia em nada dos'oto. O pai era pobrezinho mas fez de tudo pro menino ser gente na vida.

…E os homi achou uma bolsa de crack no bolso dele, tio. Disseram que já viam de olho nele há uns tempos. Quem diria, logo o donzelo do Pedinho, que era o dia todinho tocando aquela porra de trompete. Zuada do carai no pé douvido do cara.

Era um sax. Já vi ele tocar por aí… fiquei sabendo que ele tinha sido contratado como músico de uma banda de jazz.

…A população tá revoltada, defendendo bandido! E ainda fizeram protesto… se fosse cidadão, eu ficava calado! Segundo os mesmos policiais, o sax que ele levava consigo era de algum músico noiado que, na ânsia de fumar crack, noiou ("noiar" é a gíria que esses marginais usam pra dizer que o drogado deu cabo de seus pertences pela droga) seu instrumento de trabalho - ou pode ter apenas empenhado pra pegar/pagar no dia seguinte, como é hábito de muitos que não tem dinheiro na hora.

O bar tava cheio de homem suado e sujo de cimento, metendo a colher no prato tal como se traça uma massa. E o programa policial ia recheando o prato com violência e sangue. Um murmura alguma coisa. O outro toma um copo de coca num só gole, pra descer a comida. Outro catucava o dente com um palito, já farto, só esperando pra dar hora de voltar pra mola.

Isso é que dá em querer fácil… prefiro tomar no cu na obra, me fuder todinho pra ganhar 50 conto, que num dá pra nada hoje.

É verdade! Antigamente o camarada comprava era coisa com 50 mirrei; agora, só o óleo é dez conto.

Por isso que eu digo a meu fi: só tem dois caminho essa vida aí: ou cadeia ou cemitério!

O meu mesmo já tá avisado: se cair lá dentro tá lascado, que eu mesmo num visito; se for preso porque tentou se defender, ou se for um frojado, aí seu pai vai visitar…

Meu filho tá lá dentro, mas falta de conselho não foi. Não queria nada com a vida… o pai dá conselho, mas é como meu pai já dizia "se conselho fosse bom, não se dava, se vendia"...

E os comentários iam-se fazendo a digestão daquela massa de piões.

O sangue de Pedrinho escorria no meio fio, descendo a escadaria da favela que ele tanto descia para ir ensaiar seu sax. Foi confundido com um fuzil, e a polícia o alvejou. Preto… se fosse branco, não precisaria de alvejante. A polícia não tem culpa se músico tem cara de bandido, ou vice versa.

No bar, todos versam sobre a morte… sob a ótica sensacionalista do repórter. Na hora do almoço. A fava no prato. a galinha cabidela. Na Academia, se formam filósofos e sociólogos de apartamento. A esquerda dança ciranda de calças mocassim e debate luta de classes no twitter…

Mais um John Coltrane é abatido pelo Estado racista, impedido de virar uma lenda do Jazz…

Mas quem é que liga para estatística?

Virou mais um luto.

Jey division
Enviado por Jey division em 03/05/2023
Código do texto: T7778991
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