Construção Matinal

Levantou no horário normal. Ou quase. O relógio marcava seis horas, o que fez com que saísse da cama de sobressalto, pois já deveria estar no trabalho. Em questão de segundos teceu em sua mente várias teorias para seu atraso, algumas até complexas, envolvendo física quântica e eletricidade, para justificar a falta do despertador. Porém o mistério logo foi desvendado consultando o relógio do celular. Era na verdade cinco horas. Certamente o vinho a mais da noite anterior não ajudou muito na hora de preparar o rádio-relógio.

Desfeito o mal entendido, dirigiu-se até a cozinha, e daí até ao banheiro dos fundos para aliviar a tensão de algumas horas sem urinar. Cozinha, mesa, armário, tropeça no chinelo, desaba na cadeira. Café morno de ontem, rosquinha de leite, olheiras, dor nos olhos, olhos fechando... Cinco e vinte e cinco! Pensa: Um minuto para procurar aonde deixou o tênis, mais dois para escovar o dente, mais um para trocar de roupa, um para olhar os filhos, e mais dois para pegar o capacete a chave e sair da garagem silenciosamente. Suspira de novo. Levanta a cabeça no susto, olha no relógio e sai da cozinha rapidamente.

Já está quase tudo pronto, escuta o improvável: chuva. È, com certeza, este barulho não engana. O som granulado vindo das telhas transparentes expostas pelo vão da garagem é inconfundível. O que teria acontecido com a noite enluarada de ontem? Ontem estavam as estrelas e a leve brisa que não anunciaram a dita chuva. Vai olhar na janela. Não vê nada lá de cima. Também quer enxergar o que? Está no oitavo andar do prédio, está escuro e, nitidamente a rua está molhada. Não há dúvidas. Chove e muito!

Procura sua capa. Resmunga sobre a organização da mulher que não condiz com sua própria bagunça organizada. Amaldiçoa o dia em que preferiu comprar uma moto a um carro. Joga coisas no chão. Resolve ir sem capa mesmo, afinal está calor e a chuva pode ajudar a refrescar. Ri do seu pensamento. Que coisa mais idiota para se pensar antes de ir pro trabalho, quer chegar no trabalho molhado? Acha que ainda está dormindo. Continua procurando... Resolve ir sem mesmo. Coloca aquele casaco preto surrado que tem um nylonzinho por cima para proteger um pouco o tronco contra a chuva, põe o capacete e desce. Não se atreve a chamar o elevador, que há esta hora costuma não estar funcionando. Mérito do síndico que implantou um regime de caserna para economizar energia. Síndico idiota. Desce as escadas correndo, imaginando que se cruzar com outro morador este irá morrer do coração por causa da cena abrupta, e o capacete. Acha graça do casaco, que imediatamente o lembra dos pais. Seu pai dizia para proteger o tronco, onde estão os órgãos vitais. Sua mãe colocava aqueles casacos de nylon, redondos, que o deixavam como o R2-D2, o robozinho de Guerra nas Estrelas. Quantas vezes no inverno não enfiava jornais por dentro das blusas para protegê-lo na moto...

Cinco e quarenta e sete. Chega na garagem. A luz não acende. Droga de sensor que nunca percebe sua presença. Com o tato tenta destravar guidão da moto, que tem trava na mesa, abaixo da seta. Sente a mão suja de graxa. Síndico imbecil. Droga de economia de energia. Destrava a moto, passa empurrando por entre os carros para não ligá-la na garagem. Não quer acordar ninguém, nem quer que saibam a que horas sai. Não gosta de ninguém tomando conta de sua rotina. Abre a garagem. A luz acende. Não está chovendo.

O despertador toca. Abre os olhos, são seis horas. Sua mulher o chuta para sair da cama.