Tá chovendo serpente

Meu avô, Timba, sempre disse que sonhar com cobra não é coisa boa. Quem disse isso a ele foi o bisavô Luiz, filho de Abraão, um libanês de Zahle. Sobre meus familiares, pouco sei. Mas, conforme os registros orais dos mais velhos, o tata Seba veio para Cáceres durante o fluxo migratório do século XIX. Ele se estabeleceu na região das Flechas, onde conheceu a tata Ana. Posteriormente, seus descendentes se espalharam pelos subúrbios de Cáceres e Cuiabá

Certa vez, vi no verso de uma foto do tata, muito bem preservada pela tia Oscalina, uma simbologia incomum: قدم لك الله. Bem, ele era muito bom com a caligrafia. Mas o que será que aquilo significava? — Pensei em silêncio. Senti-me um pouco frustrado naquele momento, pois minha família nada aprendeu sobre a língua árabe e a cultura libanesa. Mesmo que eu arranhasse no inglês e um pouquinho de portunhol, nada adiantou. Droga! Sorte que sempre ando com meu smartphone conectado à internet. O Google Tradutor converteu o trecho para o nosso alfabeto: “Allah ired Annak”. E daí? Sei que tinha algo relacionado a Deus por causa da tentativa falha de aportuguesar a escrita cúfica

Ainda bem que sou curioso. Fiz algumas pesquisas e fui parar na página do consulado do Líbano. Ao ler uma matéria sobre curiosidades, descobri que essa é uma das expressões usadas para afastar o mau-olhado. Segundo o tradutor, significa: “Deus te ofereceu”. Como estudante de línguas, sei que traduções literais não funcionam em alguns casos. Longe de mim querer ser oferecido a algo, então, preferi acreditar na proteção desta pequena expressão

Isso veio em boa hora. Há cinco dias tenho sonhado com cobras de todos os tipos, me mordendo, enroscando nas minhas pernas, me encarando, me engolindo. A verdade, é que eu não queria ser oferecido às cobras. Vôte! Durante minha pesquisa na página do consulado, notei que havia uma série de rituais libaneses para afastar o mau olhado. Mas onde eu encontraria uma Pedra de alúmen (Chebb) em Cáceres? Ah, deixa para lá... Ainda bem que eles também acreditam em benzeção, assim como nós, pantaneiros.

Aqui tinha benzedeiras das boas, pena que a maioria já partiu para melhor. Se hoje consigo andar, é porque dona Miguelina cortou todo o mal das minhas pernas com uma espada de São Jorge quando eu era criança. Tenho certeza de que ela saberia me orientar. Mamãe disse que cresci cheio de quebrante. Credo! Todo pesteado.

Minha tataravó do outro lado também tinha suas simpatias, mas não rezava para Allah, e sim para Tupam. Ela era indígena bororo e vivia na região da Fazenda Descalvados. Dizem que ela curou um tio-avô de uma doença estranha, que o fazia rastejar e mostrar a língua como uma cobra, com um olhar ofídio. Ela sabia de elixires e rezas aos espíritos da floresta que protegem o Pantanal. Infelizmente, tive azar nos dois lados da família, pois, assim como os libaneses, ninguém aqui quis aprender a língua, as receitas e os conhecimentos da tata. Talvez ela pudesse me ajudar a entender esses sonhos.

O fato de ter lido almanaques baratos sobre signos do zodíaco, nos quais havia informações sobre a possibilidade de ser traído por alguém, me deixou em estado de alerta. Comecei a desconfiar de quem não me olhava nos olhos ou gaguejava ao conversar comigo, parei de responder aos amigos no WhatsApp e cancelei compromissos. Coisa de gente que teve o cérebro colapsado pelos episódios de Big Brother Brasil.

O fato é que tudo isso mexeu comigo e eu busquei exílio na natureza. Fui pescar com amigos numa região chamada Sepotuba, que tem esse nome por causa do rio que lá passa. A pescaria foi horrível, ninguém capturou nenhum peixe. Olha que fizemos um banquete para esses ingratos. Tinha minhoca da hora, lambari vivo, massinha de trigo saborizada, milho e soja... Tinha mais opções do que nas minhas restritas refeições semanais para controlar a hipertensão. Além do mais, conseguimos um tablado só nosso, um remo, e uma canoa. Ostentação.

Obviamente, relacionei aquele azar aos sonhos, pois era curioso com toda aquela infraestrutura não termos capturado nada. Na verdade, estou sendo modesto. Pegamos algo sim, a maldição do fundo dos rios: Roc roc. Nome engraçado, não é? É um peixe coberto por uma fileira de placas ósseas cheia ferrões que pode derrubar qualquer macho. Esse bicho é conhecido também por ser capaz de produzir sons audíveis. Mas esse, em especial, parecia que queria me contar algo. Saberia ele dos meus sonhos? Alguns também o chamam de mandi-capeta. A partir daí você já deve imaginar a belezura que é esse pescado. Dizem as más línguas que quando ele aparece, a pesca acabou, e acabou mesmo.

Para completar, a Lety, que estava lelé da cuca, espetou meu dedo com anzol. Sangrei até, mas não prestei nem para atrair um cardume de piranhas. Os mosquitos chegaram na boca da noite. Mordiscavam todos, menos eu. Até o Gabriel, que exalava 2 litros de álcool, foi atacado. Que diabos havia de errado comigo? Mas tá bom, se vampiros existissem, eu seria imune.

Decidimos partir no final do dia. A estrada estava tranquila, exceto pela orquestra de sapos que vivia nos brejos ao redor e pelo barulho das motocicletas velhas. A cerca de 300 metros, avistei um enorme pé de copaíba e, no alto, um gavião agitado que parecia infeliz com a nossa presença. Quando passamos sob a árvore, o maldito pássaro voou em nossa direção segurando, com suas garras afiadas, uma cobra de mais ou menos 1 metro. Era uma jiboia cinza, com corpo roliço e alongado.

O que aconteceu em seguida foi algo que eu jamais poderia ter imaginado: o gavião simplesmente jogou a cobra na minha cabeça. Nesse momento, tive pena do José, que estava pilotando, porque o grito que eu dei acordou toda a comunidade e estourou seus tímpanos. Na verdade, tudo aconteceu muito rápido e eu custei a acreditar. Aquele bicho gelado ainda enroscou no meu braço, sujando-o de sangue. Fiquei estático.

Quando finalmente recuperei a consciência, pedi para que retornássemos para verificar se a serpente ainda estava viva. Foi aí que veio a segunda parte do susto: a maldita cobra estava camuflada na minha bermuda de bolinhas e só a percebi quando começou a se mexer entre minhas pernas e as costas do José. Dessa vez, ele foi mais esperto e pulou da moto, deixando-me em completo desespero pelos mais difíceis 10 metros da minha vida. Ele caiu em um brejo repleto de sapos, que prontamente começaram a cantar em alto e bom som como se estivessem celebrando o ocorrido.

Enquanto eu, segui na moto desgovernada, paralisado e trêmulo. Ela caiu, eu caí, e a cobra sem cabeça parecia tranquila com toda aquela bagunça que causou. Rastejou como se nada tivesse acontecido e o gavião, de cima da árvore, parecia rir debochadamente da minha desgraça. A pressão deveria estar em 19.8 e as batidas do coração podiam ser ouvidas a quilômetros de distância. Eu estava assustado, em choque! Não conseguia acreditar em tamanho feito da natureza. Mais tarde, conversei com seu Benacchio, sargento reformado, ele disse que havia apenas 1% de chance de isso acontecer. Só sei que a natureza não só prega peças, ela nos confronta com a nossa insignificância diante dela. Virei um saco de batatas.

Supersticioso que sou, fiquei ressabiado. Afinal, qual é a possibilidade de uma cobra cair do céu na sua cabeça? Pois é. Pouquíssimas, principalmente porque não são aladas. Mas uma cobra decapitada deixa isso muito mais mórbido e assustador. Estariam querendo a minha cabeça? Uma cigana na praça da feira disse que sim. Eu, hein!

Allah ired Annak!

LUAN S
Enviado por LUAN S em 02/05/2023
Reeditado em 30/05/2023
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