O CASO DO RÁDIO (BVIW)

Em outros tempos, tínhamos em casa um bem precioso: um rádio a pilha. Era de tamanho mediano, visor de vidro em fundo azul com ponteiros. A parte dos alto-falantes era em plástico branco com umas ranhuras que davam o maior trabalho pra limpar. Os diais de lado acertavam sintonia e volume. Por cima, todo vermelho, e tão brilhante, que refletia a imagem da gente. Foi comprado em Aparecida do Norte, numa viagem de meu pai. Não preciso dizer que aquele Phillips era o xodó da casa. Ele era.

Num dia de arrumação, a fatalidade. Pra limpar o radinho eu o depus sobre o umbral da janela. Duas galinhas começaram uma briga no terreiro. Uma delas, num sobrevoo fora da rota, atingiu sua majestade, o Phillips. O tombo foi feio, altura pra mais de metro. Fui noutro mundo e voltei, corri para acudir o rádio que jazia inerte no terreiro. Coração aos pulos, tomei-o nas mãos. De cara, vi um quebradinho no canto — uma lasquinha sem maior importância. Mas o teste mesmo ainda viria: rodei o dial, e lá das profundezas de alguma emissora perdida nesse Brasil, a doce voz de Gal Costa emergiu: “Quando eu vim para esse muuundo/ Eu não atinava em nada/Hoje eu sou Gabriela... /Gabriela ê meus camaradas... / Eu nasci assim...

E se Gabriela nasceu assim, eu também renasci assim. O rádio estava falando, Gal cantava, e eu estava salva. “Modinha para Gabriela” e Gal marcariam para sempre a minha vida.