Mil Grau

- Olha só o que acabou de chegar do Fórum!

- Vara da Infância e Juventude. Miguel Geraldo Pereira de Souza. Treze anos. Ato infracional análogo a roubo. Medida socioeducativa de internação. Quatro meses. Fundação Casa de Pacaembu. Determinação de inclusão em programa social de atendimento a adolescentes no contra-turno da escola. Órgão Público: Secretaria Municipal de Assistência Social. Unidade indicada para disponibilização de vaga: Centro de Referência da Assistência Social Ormando Nochette – CRAS Nochette. Prazo para devolutiva com documentação comprobatória de inscrição: 48 horas. Encaminhamento mensal de boletim de frequência, atestando presença do menor em todos os dias letivos e relatório das atividades desenvolvidas, informando a resposta e evolução do educando, sob pena de revogação da decisão e retorno à custódia. Cumpra-se. Notifique-se.

- Tâmo com quantos adolescentes no período da tarde?

- 28.

- Posso informar que já tâmo atendendo além da capacidade. O Estatuto do Projeto determina o máximo de 25 vagas, você sabe...

- Tranquilo, se fosse pra turma da manhã até pensaria em recusar, tâmo com 33. Bora abraçar! Pode responder que as devidas providências serão efetivadas. Liga pro responsável pra vir com o rapazinho amanhã, pra gente conhecer, fazer inscrição e já começar a participar.

- Pessoal! Esse é o Miguel! Tá caindo pra dentro do Projeto...

- O Mil Grau!

- É nada que o Mil Grau vai entrar no Projeto!

- Se liga, vacilão! Só tô aqui porque o verme do juiz mandou...

- Vâmo dizer que o juiz deu uma chance pro Miguel: escola e Projeto todo dia, sem tolerância com falta. Se der perdido, volta pra Fundação Casa.

- Então já era! Pode chamar os hôme pra levar ele...

- Duvido o Mil Grau aguentar duas semanas aqui!

- Vai morder o rabo do capeta! Pra não voltar praquele inferno tô topando qualquer fita, até aguentar você, mané!

- Qual é galera? Tô estranhando vocês, recebendo o Miguel desse jeito.

- É que a gente conhece ele, Professor! Esse moleque é virado nos setenta...

- Pode crer que vai tocar o terror aqui, na escola, na quebrada. Do jeito que sempre tocou. É o Mil Grau, Professor!

- Aí, vou mandar uma letra pra geral: vou ficar de boa só por causa dessas resenha torta de vocês aí. Pode groselhar. Pra mim é força! Pra calar a boca de todo mundo! Só depende de mim, falei?

- É isso, anjinhos e anjinhas! Só depende do Miguel! Então, se ele tá falando que vai segurar a onda, vâmo botar uma fé!

- Mil Grau, Professor! Miguel, não! Meu nome é Mil Grau!

Todo mundo deve estar curioso pra saber o porquê do apelido, né? Nada além do óbvio: o moleque vivia pilhado, brisado de tudo e mais tudo, vinte e quatro horas ligado, a milhão, a mil grau...

A primeira semana foi punk. A segunda foi mais. A terceira, pior ainda. Difícil demais conseguir avançar até estabelecer vínculo com o cidadão.

Tem que comer muita grama até o maluco chegar ao ponto de sentir respeito e admiração com intensidade tal pra concluir que não vira zoar um cara que tá sendo tão gente boa com ele. Leva um bom tempo e nada garante que dá bom no fim...

E é um baita exercício de virtudes durante o processo de ajuste das sintonias: empatia, solidariedade, paciência, generosidade, resiliência, confiança, autocontrole, fé...

Tá certo que é preciso admitir que, em alguns dias, o Educador chegava a torcer pro Mil Grau não aparecer. Aí era só comunicar a falta pro juiz e pronto: fim do desgaste, solução mais fácil. Pra quem, né?

Mas é que a "trapaiada" era braba mesmo. Aprontou logo na primeira vez que foi ao SESI, apesar de toda a encomendação.

- Mil Grau, é o seguinte: é um convênio que a gente teve que ralar demais pra ver assinado. A gente teve e tem que provar todo santo dia que faz por merecer. Não pode vacilar. Não pode dar motivo pra quebrar o acordo. Se fizer merda lá dentro, já era ginásio, futsal, piscina, viagem pra competição, lanchinho. Acaba tudo, copiou?

Copiou nada! Veio embora com um chinelo que não era o dele. O Educador viu quando trocou na beira da piscina. Mas não fez nada ali. Deixou baixo. Esperou até o momento em que o Mil Grau tava descendo do ônibus, na frente do Projeto.

- Da hora o chinelo, hein!

- Chutei lá no SESI! O meu soltou a tira, então peguei esse. Tava lá marcando...

- Bora voltar lá devolver, então!

- Qual é?

- Nós dois! Vâmo devolver a parada! Agora!

- Mas o busão já foi, não vou na canela nem a pau!

- Eu tô indo. Se você não vai, firmeza. Mas também não vai voltar mais lá.

Aí parou pra calcular o custo-benefício do chinelo. Devolver e poder continuar desfrutando das maravilhas do SESI ou não devolver e ficar de castigo no projeto, com a Assistente Social, duas vezes por semana, enquanto a galera curte o passeio.

- Bora lá, então! Mas vou voltar descalço?

- Moro bem pertinho, quase na frente do clube. Te empresto o meu chinelo, amanhã você me devolve...

E o Educador aproveitou a caminhada pra pesar na mente do moleque. Sabia que já não tava mais indo pro Projeto só pra não voltar pra Fundação Casa. E aí apelou pra chantagem barata.

- Mil Grau, é pegar ou largar: daqui pra frente, procedimento pianinho, na disciplina. Ou não vai ter condição de continuar com você na turma.

- Boa tarde! Esse é o Miguel Geraldo, aluno do Projeto Criança Cidadã. Ele achou esse par de chinelos esquecido ali na beira da piscina hoje. Tá trazendo pros Achados e Perdidos. Se o dono aparecer...

Pegou!

Mas o Mil Grau "paz-e-amor" durou só alguns dias. Isso porque ainda teve a Providência em ação. E foi essencial poder receber tamanha graça.

É que o Educador acabou descobrindo um ponto fraco, melhor, um ponto fortíssimo do menino. Chegava todo dia chapado, na maior larica. Batia duas pratadas nervosas e, mesmo assim, continuava aceso, elétrico.

Pentelhava todo mundo, não parava de falar um segundo, jogava bolinha de papel no ventilador pra ver o pipoco, batucava na mesa com o bendito chinelo, que o Educador acabou deixando com ele. O mensageiro do caos!

Mas vamos ao ponto de interesse: quando a conversa era ciência, o furacão acalmava. Se dissipava. Ainda mais se fosse astronomia. O Mil Grau entrava numa que parecia hipnotizado. E o Educador viu aquele brilho no olho do cara. De interesse, de vontade de aprender, de alegria de saber e até de uma certa marra por se descobrir possuidor do conhecimento.

Encontrado o veio, bora extrair até a última pepita.

- Galera, vou pedir que amanhã cada um traga uma garrafa pet de dois litros. A gente vai fazer foguetes. E vâmo botar as naves pra voar.

- Ah, fala sério, Professor!

- Não acredita? Só precisamos de uma bomba de encher pneu de bicicleta, uma mangueira de chuveiro, uma rolha, uma caneta e a garrafa, com mais ou menos um quarto de água...

- Só isso pra fazer um foguete?

- Nada mais! Só conectar uma ponta da mangueira na bomba e, a outra, na caneta. Furar a rolha até conseguir fazer a caneta passar por dentro e encaixar na boca da garrafa.

- Aí é só bombear o ar pra dentro da garrafa até que a pressão exerça uma força sobre a água capaz de lançá-la pra fora. A expulsão da água num sentido provoca o lançamento da garrafa no sentido contrário.

- Wow!

- Expriminhas e Exprimões, é com enorme prazer que lhes apresento a Terceira Lei de Newton, a famosa “Ação e Reação”: Toda ação gera uma reação de igual intensidade, que atua na mesma direção, mas no sentido oposto.

- Ah, por isso que quanto mais forte eu bato na cara do maluco, mais dói a minha mão, tá ligado?

- Não, Tá Ligado! Sua mão doía quando você batia em alguém. Não dói porque já faz um bom tempo que as diferenças são resolvidas aqui no Projeto só pela conversa, né? Mas o exemplo é bom...

- Minha vó conhece essa parada faz uma cara. Vive dizendo que tudo que vai, volta. E do mesmo tamanho que foi!

- Ah, avós! Criaturas sábias...

No dia seguinte a teoria foi pra prática. Todo mundo pirou vendo as ideias de Newton sendo comprovadas ali, na real...

- Então, galera! Nessa escala, nosso foguete chega a dez, no máximo quinze metros de altura. Mas é o mesmo princípio que faz os foguetes de verdade chegarem ao espaço. Só precisam de combustível suficiente pra gerar uma força, direcionada pra baixo, que projete o foguete pra cima com uma velocidade capaz de fazer que ele supere a gravidade...

- E foi num desses, chamado Vostok 1, que um russo, Iuri Gagarin, viu nosso planeta lá de cima pela primeira vez, em 1961. E disse a célebre frase:

- A Terra é azul!

- Também podia ter dito que é redonda, né Professor? Pra provar pra esse povo que ainda teima que é reta...

- Ah, mas pra provar isso nem precisa ir lá pra cima. Eratóstenes de Cirene comprovou que a Terra é arredondada lá na Grécia Antiga. Era matemático, gramático, poeta, geógrafo, astrônomo e, de quebra, diretor da Biblioteca de Alexandria, o maior centro de conhecimento da época. Era chamado de "Beta", por ser considerado o segundo melhor do mundo em múltiplas ciências.

- Eita, como é que ele conseguiu? Lá nos antes de Cristo, sem recurso nenhum, mano?

- E se eu disser que ele só precisou de um simples graveto?

- Ah, tá tirando...

- Estimou com enorme precisão a medida da circunferência do planeta, a partir de cálculos com base na observação do ângulo da sombra projetada pelo graveto ao meio-dia no solstício de verão.

- Agora falou grego!

- Paz no coração! Semana que vem a gente estuda o Eratóstenes com bastante calma e atenção. O que importa é que o sabidão aferiu a circunferência, ou seja, o tamanho do contorno de um círculo...

E o Mil Grau ali, na dele, só registrando o papo, com pérolas nos olhos...

Até que chegou a vez do foguete dele. Mas tem coisa que acontece que parece que é mandada mesmo.

Começou a bombear o ar pra dentro da garrafa. E eis que vem descendo a rua lateral do Projeto, bem ao lado do campinho – opa, naquele dia, era a base de lançamentos – a viatura da ronda escolar.

E o Mil Grau castigando na bomba pra fazer o foguete dele bater o recorde de altitude. E o carro da polícia descendo...

E não é que a pedra que tava escorando a nave saiu do lugar bem na hora da decolagem? E o voo acabou sendo na horizontal. E o foguete acabou virando um míssil. E foi direto atingir o alvo não planejado. Pegou em cheio na porta da Blazer.

- Vixi, deu ruim!

Os policiais desceram com os fuzis apontados pro campinho. Todo mundo ficou paralisado.

- Quem atirou uma garrafa na viatura?

- Foi um acidente, Policial! Estamos em atividade prática de ciências. Lançamento de foguetes. Lei da Ação e Reação. Tava correndo tudo dentro da normalidade, mas a base de sustentação cedeu e a garrafa foi projetada pra frente em vez de ir pra cima, justo no momento em que vocês estavam passando. Peço desculpas, ninguém teve intenção de atacar o veículo...

O soldado demonstrou desconfiança a princípio, mas acabou convencido de que não havia ocorrido nada além de um mero incidente, decorrente de uma desafortunada coincidência.

E tudo caminhava pra um desfecho tranquilo. Os policiais até se interessaram pelo mecanismo de lançamento. Pediram pra ver em funcionamento. Os meninos mandaram três ou quatro pro alto, depois do devido reparo na base.

Chegaram até a elogiar o trabalho. E aquele papo de “Estamos aqui pra proteger e servir” e coisa e tal...

E já tavam voltando pro carro.

- Tudo resolvido, graças a Deus!

Só que não! o Mil Grau deu um jeito de chutar o balde:

- Foi sem querer mesmo! Mas tirei onda, mano! Acertei a barca dos verme, castela? Tô curtindo a milhão! Quero que vai tudo morder o rabo do capeta!

E os quatro policiais se voltaram instantaneamente.

- Quem foi que falou isso aí?

- Agora é que deu ruim!

Continua...