Lavoura diletante
Para se comer uma jaca, planta-se a dita cuja oito anos antes. O abacateiro leva três anos para começar a produzir. Com dezoito meses você já pode consumir seu abacaxi. Se quiser acelerar o processo, utiliza-se carbureto de cálcio. Essas são instruções que recebo do caseiro de uma granja vizinha, enquanto semeio meu quintal. Nem sempre tenho sucesso com as sementes. A terra não ajuda, mas eu vou repondo os nutrientes, adubação orgânica, esses macetes que vou recebendo na cumplicidade do velho cuidador do solo, um homem dedicado ao plantio e à colheita como forma de ver o mundo, se é que me entendem. Já tenho até colheitas de frutas incomuns, como o achachairu, natural da Bolívia. Sua safra foi um louvor para este agricultor despreparado. Serve para desestressar, inspirar e baixar o santo do cultivador diletante no terreiro. O achachairu adoçou bocas que merecem beijos. E para as bocas que não fazem jus a osculações, cachaça nelas! É que a fruta doce não serve como tira-gosto. Para isso tenho a acerola e o limão.
Meu alquebrado orientador, velho de uns 80 anos de idade, pra começo de conversa, manja de árvores, passarinhos, cachorros, roças, porcos, vacas, ovelhas, galinhas e abelhas. E sentimento humano de alegria no parto da vaquinha, tristeza na morte da porca, raiva das cobras, medo dos relâmpagos e desprezo por qualquer coisa que não seja seu ínfimo universo rural. “Não tem medo de viver só, aqui nesta granja?” “Tenho não. Aliás, ter eu tenho, às vezes. Mas não é defeito, é porque o medo ensina a gente a ver até onde pode ir sem cair no buraco. A onça fica velha, mas não perde as pintas”. Eu vivo também hermeticamente nestes ermos, pedindo a benção ao velho lavrador. Por acidente, sorte ou destino, eis-me aqui nesta serra isolada, na calma aceitação do fadário. Nas amarguras, tomo suco de maracujá. Para ansiedade, vou de caju. Depressão se cura com banana. Manga é bom pra dar disposição e força. Acerola é nota dez no combate aos vírus. Mamão remedeia até aflição. E achachairu é o charme do estrangeiro, junto com o desgosto de pensar que jamais iremos provar as três mil espécies de frutas que existem no mundo e suas infinitas variedades.
Este inviável lavrador, que sou eu, faz diariamente uma espécie de revista nesse ambiente campesino, onde a vida vibra e palpita nos sapos, galinhas, insetos, passarinhos, gatos, lagartixas e eventualmente uns camaleões e saguis, escondendo-se do gavião-peneira que ronda no espaço aéreo. Tudo ali floresce, cresce, pulula e viceja na palpável energia das coisas vivas. Cada bicho ou planta reclama seu lugar ao sol, ou aos túneis, como as minhocas. Cabe a mim o dever de escrever essas crônicas semirrurais para registrar, por exemplo, que nosso sapo de estimação, o Siba, morreu em acidente idiota. Caiu em uma bacia com água sanitária. O bicho não resistiu ao hipoclorito de sódio em alta concentração e foi a óbito. Já chegamos a adotar um caranguejo. Há um ato de clara virtude ao se proteger e adotar cães e gatos, principalmente se for um bicho abandonado. O filósofo Mauro Arruda doutrinou: “"Sem raça, sem graça, sem pedigree, sem destino, sem futuro, sem rumo, sem valor. Só quem adota um vira-latas sabe sua real importância...” E quem adota um caranguejo? E um sapo? São momentos únicos e superiores em que um ser humano se apieda de um animal irracional e por ele demonstra afeição, porque o bicho inspira ternura. Mesmo que seja um animalejo feio como esse anfíbio.
Enquanto isso, no meu toca-discos três-em-um, Gilberto Gil vocaliza: “Abacateiro, teu recolhimento é justamente o significado / Da palavra temporão / Enquanto o tempo não trouxer teu abacate / Amanhecerá tomate e anoitecerá mamão.” Eu complemento: e madrugará achachairu. De que fala o genial Gil na sua obra-prima Refazenda? Remete ao retorno ao seu mundo rural do sertão nordestino. A poesia surpreendente do mestre baiano faz citação ao equilíbrio orgânico. Quem sabe, é essa conexão com a natureza que me converte de vez em quando no moço lírico e utopista que um dia fui. Engraçado que nesta canção, Gil fala: “Abacateiro acataremos teu ato”. Interpretava-se como referência ao verde das fardas dos militares que davam as cartas naqueles tempos de chumbo, meados dos anos setenta. O Ato Institucional Nº 5 foi o decreto determinante da ditadura. A canção é, entretanto, um belíssimo hino lírico ao chamado ecossistema, um canto ambiental quando na época pouco se falava neste assunto.