Benzeção 

     As tão comuns erupções de pele, atualmente muito conhecidas da Ciência e facilmente tratadas, estiveram sempre presentes em nossa infância.  Hoje sabemos, com maior clareza, que há inúmeras causas para as incômodas coceiras, que estão aí por todo lado. Não há indivíduo por mais sortudo que seja capaz de afirmar nunca ter tido uma coceira dessas. Estudos mais recentes apontam para a presença do vírus da catapora, que permanece no organismo das pessoas por toda a vida e pode se manifestar, em quadros de baixa imunidade. É a temida herpes zoster, para a qual já existe uma vacina, caríssima, inclusive!

     Pois, naquele tempo de relativo atraso e muita crendice, as coceiras eram relacionadas a contatos com pequenos animais, principalmente aranhas, sapos e lagartas. E eras designadas como cobreiro. E o melhor remédio eram, geralmente, a infalíveis benzeções.

      Nas redondezas de onde morávamos, havia vários benzedores. Alguns com grande fama e muito concorridos.  Na nossa rua, tinha a Dona Divina, que sempre prestava, para toda a vizinhança, seus valiosos serviços. Benzia de tudo: cobreiros, espinhela caída, mau olhado, aguamento, entre outros males que viviam assombrando todo mundo.

     Lembro-me de uma ocasião em que fui conduzido até a casa dessa benzedeira por causa de um cobreiro que estava me amolando muito. Cheguei lá muito ressabiado. A mulher tinha uma cara de brava, era muito alta e forte, sempre disposta para qualquer tarefa da casa, desde amamentar um filho pequeno, a carregar grandes baldes de água, feixes de lenha gigantescos e ainda manejar qualquer ferramenta, historicamente, reservada aos homens como foices e machados.

     E, quando chegamos lá, eu e meu irmão mais velho, ela estava justamente rachando lenha, com um afiado e potente machado. Parou o trabalho, ofegante, para nos atender e, ciente do caso, ainda com o machado na mão, pegou uns galhinhos de arruda e dirigiu-se para a grande porta da cozinha.

- Vem cá, menino, que vou cortar esse cobreiro seu rapidinho. E olhava ostensivamente para o machado que carregava.

Bateu-me um frio na barriga e tive vontade de sair correndo, mas não teve jeito! Tive que me ajeitar atrás da porta, tremendo como vara verde e responder aos comandos dados pela Dona Divina.

     Ela perguntava com sua voz forte: - O que que cura?   E eu, timidamente, respondia: Cobreiro... - Mais forte, menino! ordenava ela.  Enquanto perguntava ela batia levemente o machado em cada ponto do portal e no chão formando uma cruz imaginária. Era um toque leve, mas o suficiente para eu sentir a madeira sendo ferida pelo corte da ferramenta.

Repetiu o ritual por três vezes e ao final, passou na parte ofendida do meu corpo os ramos de arruda, enquanto de olhos fechados, rezava para si mesma uma oração ininteligível.

     Foi um alívio quando tudo terminou e pude voltar para casa, enquanto ela retornava para o terreiro, onde estivera rachando grandes toras de lenha, antes da nossa chegada. Com a severa recomendação para não encostar mais em teia de aranha, sapos, lagartas e outros bichos remosos. E não passar debaixo de pé de aroeirinha que era um veneno para quem tinha alergia à planta.

     Um agradecimento e lá íamos nós. Não sei se pela reza ou pelos remédios que minha mãe costumava preparar, o certo é que, com poucos dias, o cobreiro sumia e já estávamos pensando em outras aventuras.

 

Fernando Antônio Belino
Enviado por Fernando Antônio Belino em 29/04/2023
Reeditado em 12/05/2023
Código do texto: T7775989
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