Super Nintendo
Maria é viva ainda; talvez não se recorde de mim, visto que anda perdida.
Quantas vezes me encontrei nos seus consoles, que me eram como consolo na vida.
Quantas vezes, nos seus controles, deixei-me perder, como quem perde o cabaço.
E quantas vidas não me encontrei nos canos e mistérios do Super Mário?!
Dona Lúcia, outra que, talvez, não esteja hoje tão lúcida.
Todavia, lembro-me das manhãs e tardes, e até, às vezes, das noites, que me aventurava nos jogos que me eram mais prazerosos que a realidade.
Uma ficha era um passaporte para o fantástico, para o torneio de Kof, ao qual eu era não apenas um jogador, mas o próprio Maguila, lutando contra minha anorexia e, por sua vez, o bullying.
Metal Slug – aprendi a matar todas as minhas faltas na escola, entre outras faltas: presença de mãe, pai...
Caddilac – era para mim como Spielberg e Lucas o são para o cinema blockbuster. Era o meu Jurassic Park.
Bomber Man – era meu jeito de explodir o que implodia no meu peito, e eu passava dias e dias jogando bombas em monstros da minha cabeça.
Top Gear – era sobre fuga da realidade. Geralmente me sentia um Airton Senna, mesmo sem saber que importância tem em corridas de F1. (Mais tarde o F1 me teria outro sentido).
Sunset Riders - eu já me enveredava no velho oeste antes de ler Tex, Dee Brown; de ver Eastwood dirigido por Leone.
Goof Troop - Indiana Jones do meu desenho favorito da infância. Sobre pai e filho procurando tesouros. Quando não se achava isso em casa, abraços.
Feira do troca é uma feira onde se vende e se troca de tudo: passarinho, revólver, vitrola, dvd, fone de carro, bicicleta, violão, dentre outras coisas, inúteis ou não. Era adolescente. Época que não sabia o que era dor, mesmo sentindo. A ignorância sempre amainou o fardo da consciência humana. E eu, na minha inocência, achei que se levasse o vendedor - ah, eu havia encontrado, tentando trocar meu dvd de Cão de Briga por algum outro filme de ação, um cara com um Super Nintendo nas mãos - em casa, mostrasse ao meu pai, ele, meu velho, compraria meu sonho pra mim. A princípio o vendedor não quis me dar ouvido - ele não acreditava que meu pai poderia comprar ou, então, não arriscaria andar um quilômetro para tentar a sorte, se fiando na palavra de uma criança esquálida querendo comprar seu sonho. Então foi, com um pé atrás. Consegui convencê-lo, mentindo, que meu pai tinha mandado eu ir na feira justamente para encontrar alguém vendendo o tal vídeo game. E, naquela época, eu era um rato de fliperama - quando acabam minhas moedas, continuava lá vendo outros garotos jogarem, babando, roçando os olhos, a fim de alguma migalha de diversão.
Meu pai olha para mim como quem assiste à Uma Odisseia no Espaço e não entende nada, lógico. Eu me faço seu Rei Leão, seu Rocky Balboa, seu Bruce Lee, para que ele entenda, de maneira afetiva, que aquele vídeo game era minha vida - tanto quanto os filmes citados o eram pra ele. O dono pede pra testar. Meu pai estava desempregado, mas eu era seu Simba. Ele faria qualquer coisa pro seu filho. O homem coloca um cartucho de Super Soccer Deluxe. Super gráfico.
Muito realista. Meu pai amava futebol e, claro, compraria a ideia de jogarmos juntos. Eu fantasiei isso na minha mente como quem fantasia ganhando no Jogo do Bicho, Loteria, comendo Rita Cadillac. Estava mudo. Cadê o som, diz meu pai. O cara, que até então estava mudo, disse que era o único problema do console, pro meu desespero. No acréscimo do segundo tempo, o time rival empata. Eu digo: não, mas isso não é problema! Veja pelo lado bom: eu não encomodo ninguém com o barulho dos jogos. Seria um gol, não é? Mas bateu na trave e, no rebote, o goleiro agarrou: "Não vale a pena comprar algo quebrado; é melhor esperar mais um pouco e ter um troço desse com som."
Meu pai estava resoluto, e eu, incrédulo. Atarantado. Batia o pé que era aquele que queria. No entanto, meu pai era um homem de uma palavra. De luto. Os soluços brotando como espasmos no peito. Sussurros. O sonho começava a se desmanchar. Só um borrão. O suor frio. A frustração, ou melhor, um ensaio sobre a frustração, pois a própria viria anos mais tarde, repetidas vezes. Odiei meu pai naquele momento. O Super Nintendo me escorreu sobre as mãos. A vida. Mas não era a vida, de verdade, era um objeto de desejo, um fascínio, um crack pra quem tá no vício. Tão logo eu esqueci. Meu pai não me abraçou, nem me deu carinho nem alguma coisa que me fizesse sentir-me menos mal naquele momento. Ele só me deu um olhar. "Depois a gente compra." Eu sabia que ele cumpriria. Ele sempre me deu presentes quando eu era criança. Agora, está desempregado. Infelizmente, não podia. Felizmente, por vezes, a ignorância é uma dádiva: passávamos por necessidades, e eu não sabia…. Eu só queria um Super Nintendo. Seria meu guarda roupa de Nárnia. Mas... Precisávamos comer.
Eu hoje, Superintendo.