Aquário
Aquário
O aquário, de animais marinhos, fechou para manutenção, na época em que me mudei para de Santos, tinha oito anos. Assustei os meus pais, acuada de não querer mudar de cidade, eles passaram a me olhar como se eu tivesse perdido parte da minha candura. Levei muitas conchas do Rio de Janeiro para Santos. As minhas meias tinham pó de conchas até nos ilhoses dos tênis. Este foi um momento sensível para a família. Essa história é mais minha do que deles.
Minha avó foi para Camburiú e trouxe uma ostra viva. Desde então, fixei gosto pela forma fofa petrificada das conchas. A outra avó, me fez sopa de tartaruga, disse, se eu a tomasse ficaria forte, fiquei com medo de sorver o líquido. Senti aflições por não saber o futuro.
Gosto de colecionar conhas desde criança. Elas eram recolhidas no final de semana exalavam um cheiro de cabeça de peixe crua, que se misturava, com o cheiro de saco de pano lavado com água sanitária. Era lá que as carregava, como um pedaço sólido do mar. Algumas conchas fechadas e outras semiabertas, que soltavam água. Não era agradável. Sempre gostei quando o chão da praia ficava repleta de conchas quebradas e trituradas. Tenho memória dos barulhos que faziam, quando pisava sobre elas.
Perto de eu completar nove anos, fiquei com um silêncio típico do fundo do mar e uma pressão nos ouvidos, que encaixaram meu corpo na água. Uma paralisia facial me roubou a vida, achei uma força que saiu da pérola do meu umbigo, quando criança. Fiquei dentro do mar por meses, para recuperar meu rosto. A doença aniquilou o que restava de candura, demorou anos para me acostumar com a perda. Na época, imaginei um vidro de aquário com três metros de altura e quatro de comprimento, que não se abalou com os chutes que recebeu, fiquei com temperamento alterado.
De um dia para o outro, um lado do meu rosto ficou mole, feito miolo de ostra. Fiquei severamente desconfortável. Olhar esmaecido que não relaxava à luz do dia. A boca, perdeu a elasticidade de ir. Virei ostra como a Macabeia, Clarice Lisceptor. Ela é uma figura em desalinho com o mundo, que sente dor. Uma pérola, como muitas outras. Afastei-me das pessoas, meu rosto ficou como as ondulações de uma ostra. Corpo e alma estavam doentes. Não pude deixar de ter culpa pelo afastamento das pessoas. Me extingui dos pensamentos.
Perdi contato com a família, estava em desarmonia. Por causa das lembranças carinhosas das avós, tive tempo de ser concha pré-histórica por fora e pude cuidar-me com calma, do miolo mole por dentro. Sem as lembranças delas, seria mais difícil aceitar os limites impostos de uma paralisia facial. Fiquei firme e grudada ao chão para recuperar a forma. A cada dia fazia exercícios de recuperação, voltei a sentir sensibilidade ao toque. Faço análise há um certo tempo, Poderia dizer que ela me solta para pensar em conflitos ou resolvo-os como se estivesse no meio da literatura. Constatei uma autoatração. Carrego um ou dois livros para medir o quanto não estou lendo quando saio de casa.
Perto dos dez anos, fui ao oceanário em Portugal, disseram-me que era o maior do mundo. Minhas avós queriam que conhecesse esse aquário. Nunca vou esquecer essa viagem, pois sonhei com conchas invertidas, com dois orifícios, com formações até então desconhecidas e ainda bem pontudas. A Fundação Pablo Neruda emprestou uma coleção imensa com diversos tipos de conchas. Em outra viagem, na adolescência, conheci a casa de Neruda. Está em um penhasco cinematográfico, na ponta de uma praia. Encontrei mais conchas desconhecidas por mim, dentro da casa. Tentei desenhá-las, foi um desejo de enxergá-las pelas minhas próprias mãos.
Desde então, gostei das conchas que tinham cracas nas superfícies. Sempre desenhei os contornos das conhas, do mesmo jeito que tirava os contornos da minha mão. Aprendi com o tempo que deveria olhar vinte e desenhar cinco. Meço tempo pelas repetições dos piados dos pássaros, desde a infância.
Minha contribuição ao mundo aquático, que ganhei de graça do mar, fez-me ilustradora, especificamente de conchas. Posso ficar quatro horas consecutivas, até finalizar um desenho.
Gosto dos espaços vazios de dentro das ostras. O lápis desenha as saliências como um piscar dos olhos. Desta forma me comunico com o mar. Elas são estruturas sólidas para contê-lo perto de mim.
Margeio a natureza como “o homem cumpridor, ordeiro.…” de A Terceira Margem do Rio. Ele navega em um rio, eu estou no mar, ambos nas águas. Mantenho todo o corpo embaixo d’água, com os olhos acima d’água, fico obscura, solta na água, sempre a espera da maré. Minhas conchas são conchas de papel. Não tenho descendentes, para continuarem a seguir o mar.
Há momentos em que estou tão mergulhada, que imagino uma fazenda de conchas, todas abertas. Passeio entre elas no fundo do mar. É como se o pó de concha incomodasse menos, entre os vãos dos sapatos. Desde criança as minhas pernas andam perto do mar. Conchas no bolso do uniforme, dentro do estojo, na cômoda da cabeceira e na mesa de trabalho. Ultimamente, uso um colar de plástico, em forma de tentáculos de polvo. Hoje, não tenho aquário, tive um na infância. Não entro no mar para pegar jacaré.
Silvana Guinalz