PESSOAS IMPORTANTES
Todos nós temos histórias diferentes dos demais, entretanto há histórias de vida que se entrelaçam com as nossas, depois se separam e as pessoas parece que nunca existiram. Entretanto algumas nos marcam indelevelmente e são pontos de referência para toda a vida.
Sempre gostei de conversar com pessoas mais velhas do que eu, pessoas que não eram parentes e cuja afinidade surgiu da admiração que eu sentia por elas e pela generosidade que demonstravam ao esclarecer minhas dúvidas.
Na rua em que morei de zero aos 26 anos também moravam três dessas pessoas.
Dona Maria Amável, professora aposentada, morava na casa em frente à minha. Casa enorme aos meus olhos de criança. Uma das suas filhas foi, a minha primeira professora.
No contato com aquela família, respirava-se conhecimento pois, o marido e dois dos filhos homens eram médicos e as quatro filhas, professoras.
A sala de visitas com as paredes forradas de livros fora transformada em biblioteca e nela havia a coleção Tesouro da Juventude com o “Livro dos Porquês” ao final de cada volume.
Havia encantamento naquilo tudo e Dona Amável, ajudava-me a ler, ensinando como pronunciar e o significado das palavras novas surgidas nos textos que eu ia ler depois do jantar.
Muitas vezes minha mãe foi me buscar porque eu havia pegado no sono sentado naquela poltrona macia e com o livro sobre as pernas.
No canto de uma das estantes, jazia uma caveira com a sentença gravada no osso frontal – fui o que és, serás o que sou -
Dona Ritinha morava quatro casas antes da minha no mesmo lado esquerdo da rua.
Viúva de desembargador, bastante idosa, nas tardes enquanto jogávamos gamão, que ela havia me ensinado, contava histórias vividas por ela nas comarcas em que o marido tinha sido juiz e foi através dela que conheci as composições de Johann Sebastian Bach, fatos e lendas sobre os reis europeus, com destaque para os portugueses e Habsburgos, parentes da nossa Imperatriz Leopoldina.
Católica fervorosa pedia que a acompanhasse para poder participar das procissões e dos terços rezados nas casas dos paroquianos durante a Cruzada do Rosário em Família do Pe. Patrick Peyton.
Bolo inglês com chá ou doces em calda davam sabor aos nossos encontros.
O senhor Militão, depois do infarto que, a contragosto o aposentou, veio morar duas casas depois da minha.
Durante toda sua vida fora administrador de engenhos na Mata Sul de Pernambuco e conforme dizia, preferia ter morrido sobre o lombo da burra em que passava os dias trabalhando do que ocupar as horas ociosas confeccionando palitos de dentes com a faquinha de cortar fumo.
Conversávamos sobre muitos assuntos, mas eu gostava mesmo era de ouvir ele contar as histórias da gente dos engenhos, das tarefas e dos problemas surgidos com o trabalho, das cheias ou secas, das brigas e das festas, das visagens e assombrações nas noites de moagem.
O médico havia prescrito dieta onde era proibido tudo o que ele gostava de comer ou beber.
À revelia das recomendações, todas as vezes em que ia visita-lo eu levava um pacote (pequeno) contendo pedaços de rapadura que ele colocava no bolso e saboreava durante as nossas conversas. Para não deixar rastros, trazia de volta o papel do embrulho.
Algum tempo depois da sua morte, conversando com dona Lourdes, a viúva, eu confessei o “crime” tantas vezes cometido e ela me disse: eu sempre soube disso, porque depois das suas visitas, apareciam farelos de rapadura no bolso do paletó do pijama e eu ficava agradecida a você por ter proporcionado momentos felizes a Militão...
Noutra rua do bairro, morava o Dr. Emídio, veterinário, criador de canários Belga e de vários outras Espécies nativas. Aprendi a confeccionar e ajudava-o a fazer gaiolas e alçapões, mas nunca desenvolvi o costume de aprisionar animais. Conversávamos sobre os tratos que devem ter animais e plantas.
Quando ele faleceu, deixou-me de herança um sabiá de canto melodioso que permaneceu vivo por mais de dez anos. Não tinha como solta-lo, porque ele não sabia procurar comida e fatalmente seria presa fácil para outra gaiola.
Eu já estava casado quando conheci o Dr. Murilo, médico psiquiatra. Homem de cultura enciclopédica cuja retidão serviu de exemplo, principalmente, para os adolescentes e jovens da rua em que morávamos e dos colegas desses no bairro da Várzea. Nos sábados, final do dia, conversávamos sobre tudo e qualquer coisa.
Nossas conversas começavam invariavelmente com a pergunta: sobre o que conversaremos hoje? Política, filosofia, religiões, folclore, literatura, artes...
O tempo passou.
Agora o velho sou eu e na solidão imposta pelo isolamento social em que vivemos, eu entendo o quanto esses encontros, com os citados e com muitos outros, foram benéficos tanto para mim como para eles.
Assim como sou extremamente grato pelos exemplos que recebi e uso como parâmetros para a definição do que sou e como penso.