Romance centenário
Comemorei o centenário da primeira edição do “Romance do pavão misterioso” com a paródia “Romance do pato misterioso”. O cordel que faz cem anos foi escrito por José Camelo de Melo Resende. Dizem que vendeu mais de um milhão de cópias. Virou best-seller. Meu trabalho está para entrar no livro Guinness de Recorde como o folheto menos consumido nas quebradas. Apenas umas dez pessoas leram até agora o meu arremedo de pavão que virou pato. Tudo bem, sem crise! Daqui a cem anos, estarei brigando pela suprema honra de ter sido o cordelista de menor êxito do cordel brasileiro. Nada demais para quem acaba de lançar uma coletânea de crônicas com o título “Meu livro é um fracasso de vendas”. Já dizia Winston Churchill que o sucesso é ir de fracasso em fracasso sem perder o entusiasmo. Esta citação costuma ser atribuída também a Abraham Lincoln. Há controvérsias. Como a autoria do próprio “Romance do pavão misterioso”, que é imputada ao poeta João Melquíades Ferreira, contenda que alimento no meu folheto do pato.
As comemorações pífias, até agora, não fazem justiça ao folheto do pavão. Ele foi a cartilha de alfabetização de algumas gerações de nordestinos e fonte de sedução poética. A musa do cordel contemporâneo, Clotilde Tavares, registrou com ternura: “É uma história de eterno encantamento para os meus ouvidos. A literatura de cordel, apesar de escrita, é feita para ser lida em voz alta, e as estrofes dessa obra imortal continuam ecoando na minha mente, na voz de Mamãe, que lia para a gente ouvir sentada no batente da porta, nas noites da minha infância em Campina Grande”. Mesma experiência vivi, na porta da casa de minha vó analfabeta e fã dos cordéis. Eu, com o deslumbramento dos meus dez anos, lia o “Romance do pavão misterioso” para uma plateia de vizinhos e agregados. Comecei muito cedo a andar pelas veredas dos pavões enigmáticos e outras aves místicas do cordel brasileiro.
Em 2013, para celebrar os noventa anos do famoso folheto, o poeta Paulo Gracino, natural de Guarabira, escreveu o poema 90 anos de encantos de um Pavão Misterioso. No centenário, o pavão só mereceu uma paródia troncha deste cronista e autor de literatura de cordel sofrível. Felizmente para o cordel, o “Romance do pato misterioso” permanecerá na deslembrança dos leitores de folhetos, enquanto o pavão estará impávido e imortal daqui a mais cem anos.
Neste ano, não duvido que as pessoas responsáveis pelas questões dos vestibulares estejam pensando em obras literárias memoráveis nas efemérides de 2023 para constar nas provas. Quem sabe, entrará o Hamlet, de William Shakespeare, obra que faz 420 anos. A peça é muito importante para a literatura mundial, mas não é maior do que o “Romance do pavão misterioso”. Pelo menos para os visceralmente apaixonados pela arte nordestina do cordel, que brotou na Paraíba por obra e graça de esquecidos poetas da cidade Teixeira, na segunda metade do século dezenove. Foi lá que surgiu um poeta chamado Leandro Gomes de Barros, nascido em Pombal e criado asas em Teixeira, no sertão da Paraíba. Seu tio era padre e ele teve acesso ao universo da literatura. Acabou recriando o cordel.
Enfim, “a gente fazemos o que pudemos”, como diria Sonsinho. Aqui e ali conserva-se a memória do grande clássico do cordel. Na cidade Pilões, o meu amigo poeta Gilberto Baraúna procurou as ditas autoridades públicas para organizar uma festança comemorativa aos cem anos do “Romance do pavão misterioso”. No seu estilo burocraticamente estulto, as “autoridades” negaram pão, água e sal para a panela festiva do poeta Baraúna em sua intenção de celebrar o pavão. A cultura do lugar perde vitalidade, conforme observou o poeta. Não só a cultura, mas toda cidade definha, segundo as estatísticas. A população de Pilões foi estimada em 7.700 habitantes em 2006. No censo de 2010, aparece com 6.900 habitantes. Mesmo sem auxílio, o poeta Baraúna marcou a data com um festim onde estiveram presentes diversos cordelistas com suas fantásticas aves de arribação, sedução e ilusão, incluindo pavões de diversas origens e múltiplas belezas, abrindo o leque de suas penas, procurando uma pavoa para cortejar. Essa pavoa com rima pobre em ar atende pelo nome de cultura popular.