SALVO POR UMA CICATRIZ

A mulher já passara dos 50 anos, mas ainda conservava seus traços da mocidade bem realçados. Casada há bom tempo, com dois filhos já crescidos e membro atuante numa igreja, mantinha as rotinas diárias prevalecendo princípios de retidão que torneavam seus passos desde sempre, inclusive no trabalho que cumpria, num Banco, atendendo os clientes nas suas demandas. Por conta da pandemia, ela e os colegas bancários estavam sempre de máscara e mantinham o distanciamento social entre si e com as pessoas atendidas.

Era um homem grisalho, já passado dos 60 anos e bem apessoado, que fazia aplicações financeiras naquela agência.

Por conta disso, no mínimo uma vez por semana lá comparecia pra checar os rendimentos, pois não tinha muita familiaridade com a internet. O Banco reduziu bastante o quadro de funcionários e somente aquela mulher estava disponível para fornecer as informações que o cliente sessentão precisava. A frequência com que ele ia lá possibilitou que fossem construindo um relacionamento profissional consistente e que, pouco a pouco, começou a se esgueirar para o lado pessoal.

Então passaram a compartilhar também certos assuntos que não faziam parte do roteiro original, mas sempre com certa superficialidade, entremeando as conversas que tratavam de rendimentos e nuances de praxe. Assim, sem se darem conta, foram delineando um relacionamento paralelo que, pouco a pouco, foi se lastreando, de forma que espelhava certa intimidade, algo que ultrapassava os limites de um vínculo funcionária/cliente. Ela não percebeu que estava se envolvendo emocionalmente com aquele homem, situação que era, em princípio, inadmissível, especialmente pelos princípios cravados pela sua igreja e que ela compactuava com fé e determinação. Tinha, inclusive, dificuldade para reconhecer que seu coração disparava quando o avistava se aproximando de sua mesa. A paixão incontida que surgira naquela altura da vida, de alguma forma mexeu com sua vaidade, pois passou a se cuidar mais, das roupas e cabelo à maquiagem diária. Quando ia dormir, ao lado do marido, a imagem daquele cliente vinha à mente instintivamente, chegando até a fazer parte de alguns sonhos, temperados com certa dose de erotismo que deixou de fazer parte do seu mundo real há muito tempo. E assim foram passando dias e meses, com aqueles encontros ameaçando seus princípios rígidos e, quem sabe, colocando um casamento de mais de 30 anos em sério risco. Será?... Numa manhã de sexta-feira, lá veio o tal homem se aproximar da mesa e o seu coração, de novo, bateu a mil. Depois de alguns minutos de conversa, ele resolve coçar o rosto e, para tanto, tira a máscara de uma das orelhas. Foi então que ela viu e tremeu na base. Uma enorme cicatriz do nariz ao meio de bochecha deformara aquele rosto que na sua fantasia tinha traços perfeitos de verdadeiro Adonis. A imagem grotesca de alguma forma a aterrorizou, só tinha visto algo parecido no cinema, e em fração de segundos a impregnou com repulsa extrema mesclada com nojo e frustração. Ele percebeu o mal estar que a sua cicatriz causou na atendente, recolocou a máscara e rapidamente concluiu o assunto do dia, se despediu dela e foi embora. Nunca mais retornou, provavelmente abriu conta em outra agência e lá passou a fazer as aplicações financeiras. E, talvez, começou a mexer com outro coração.

Um casamento foi salvo por aquela cicatriz.

Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 23/04/2023
Código do texto: T7771184
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